São Paulo, domingo, 13 de outubro de 2002 |
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DANUZA LEÃO Delícias familiares
Uma história de amor pra
valer nunca é fácil, sobretudo
quando os dois passaram dos 40.
Cada um já chega com sua bagagem de casamentos, filhos, felicidades, fracassos, experiências, hábitos; mas, como estão apaixonados e o amor é o que importa, vão
em frente, prontos a enfrentar
qualquer obstáculo para poderem ficar juntos. A adaptação
corre quase às mil maravilhas; cada um conheceu os amigos do outro, as mulheres e os maridos dos
amigos (que eram amigos dos ex),
mas todo mundo acabou se dando bem. Os filhos, já adolescentes
-e bem educados-, levaram tudo numa boa e adoraram a novidade do casamento, sobretudo a
festa. Agora, pensam, é só ser feliz.
Se esqueceram da importante
existência de duas pessoas que
brilharam pela ausência e discrição em todo esse período: os respectivos ex, o pai e a mãe dos filhos adolescentes dele e dela, e
que serão uma presença importante e constante na vida do novo
casal. É claro que eles -os ex-
vão puxar a língua dos filhos para
que eles contem tu-do que está
acontecendo, da decoração da
nova casa aos detalhes mais sórdidos e mais baixos; aliás, quanto
mais sórdidos e mais baixos, melhor. E os filhos vão entrar no jogo; em parte por estarem, to-dos,
com ciúmes -e consequentemente com raiva- do homem
que está dormindo com sua mãe
ou da mulher que dorme com seu
pai. Sendo assim, vão contar tudo
que acontece no novo lar e exagerar um pouco -para pior- só
para agradar à mãe e ao pai. Se a
comida for péssima, é fácil: é péssima e pronto. Mas, se a madrasta, como eles a chamam, resolver
dar uma caprichada para agradar, vai ser chamada de puxa-saco, com o maior desprezo. As
crianças -entre 16 e 20- vão
puxar um assunto da pré-história, quando tinham um cachorro
chamado Gorila, que matou a
dentadas o gatinho Miau-Miau.
Será uma conversa só de recordações, onde de vez em quando entrará o nome da mãe ausente, e a
coitada vai ficar muda, sem ter o
que dizer, para a felicidade total
dos filhos, pois a intenção era exatamente essa. Nesse novo lar foi
arrumado um quarto com duas
camas para que as crianças sintam que a casa também é delas,
por um fim de semana ou para
sempre. Mas a crueldade juvenil
não tem limites, e eles não dormirão, jamais, nesse quarto, nem
mesmo na noite de Natal, quando
ninguém consegue um táxi para
voltar para casa. Outro capítulo
interessante é tentar fazer com
que os filhos dela fiquem amigos
dos filhos dele. Oh, quanta ilusão:
nada neste mundo poderá fazer
com que uma só palavra seja trocada entre eles, jamais. Sempre de
propósito, para que a harmonia
não reine nem por um segundo
na tarde de domingo, o único dia
em que eles se vêem -por obrigação, é claro. A vida vai passando
e, um dia, o novo casal, que continua se amando muito, desconfia
que vai ter um filho. Quando a
notícia se confirma, convoca os
futuros meios-irmãos e a novidade é recebida com uma frieza glacial. Uma das meninas, mais saidinha, arrisca um "vocês não estão um pouco velhos para isso?". E
olha que o fato foi contado com o
futuro pai sentado numa cadeira
e a futura mãe em outra, bem
longe um do outro. Se houver um
gesto de carinho entre os dois
diante dos filhos, isso será considerado, no mínimo, do maior
mau gosto. Os meses se passam,
um dia a criança nasce e os
meios-irmãos são convidados para conhecê-la -espontaneamente, eles jamais iriam. Nesse dia, a
mãe do bebê toma, enfim, uma
atitude: chama também seu psicanalista, o de seu marido e os de
cada um dos filhos, para ajudar a
segurar as pontas. Ah, e o psicólogo do bebê. |
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