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ARTIGO
Falta treinamento e sobra nervosismo
RAPHAEL GOMIDE
DA SUCURSAL DO RIO
"Troca tiros com vagabundo
na favela. Ele se rende. Vai
prender? Eu vou matar!"
Ouvi esta frase mais de uma
vez no curso de Formação de
Soldados da Polícia Militar do
Rio, que freqüentei por um mês
para escrever a reportagem "O
Infiltrado - Por dentro da PM"
[publicada no caderno Mais! da
Folha, no dia 18 de maio]. Argumentei que o procedimento
é ilegal, mas recebi como resposta um tapinha no ombro
com desprezo. "Se você entrar
na PM com essa de "prender", é
bom rezar muito! Direitos Humanos é para quem é humano!"
Quando um agente decide
que um preso (bandido ou inocente) deve morrer, a pena de
morte está em vigor, sem tribunal ou processo legal, e a Constituição deixa de valer. Na rua, à
primeira ameaça de perigo, o
policial atira no "inimigo". Que
pode ser um menino de três
anos, como foi João Roberto,
morto semana passada, ou um
trabalhador assaltado, como
Luiz Carlos Soares da Costa, 36,
a vítima da noite de segunda.
Em treinamento de agentes
brasileiros pela SWAT do Texas (EUA), no Rio Grande do
Sul, um integrante do grupo
norte-americano contou, para
minha surpresa, que em 13
anos de operações de resgate,
nunca havia disparado um tiro.
"A técnica e a velocidade substituem a violência", afirmou.
Os alunos PMs ouvem repetidas vezes no curso que não se
deve disparar a não ser em legítima defesa própria e de terceiros, e que devem fazer "uso moderado da força". Descobrem
lá, como eu, que "perseguição"
a pessoas em veículo "em atitude suspeita" é errado: deve-se
acompanhar o carro e fazer o
cerco. Perguntam se devem atirar em quem foge da abordagem e escutam um sonoro "claro que não!" Os comandantes
da PM, portanto, não mentem
quando afirmam que os recrutas aprendem tudo isso. Então
o que acontece?
O problema está no hiato entre a teoria e a prática. Isso começa na precária formação dos
PMs, com pouco treinamento
prático, principalmente por
falta de recursos. Eles são formados com 40 tiros de pistola,
40 de revólver e 40 de fuzil,
quando não se conhece arma
com menos de 250 disparos.
Os discursos contraditórios
na escola -o oficial e o não-oficial- deixam o novo PM cheio
de dúvidas. Na hora da ação,
falta treinamento e sobra nervosismo. A mentalidade e a
ideologia "da rua", então, prevalecem sobre a doutrina do
curso de formação.
Causa e efeito disso: a polícia
fluminense é a que mais mata e
a que mais morre no Brasil. Em
2007, matou 1.330 civis em supostos confrontos. Morreram
151 agentes, 119 na folga, e o restante, 32, em operações. Todas
as polícias dos EUA, somadas,
mataram 375 pessoas (28% o
número do Rio) em 2006.
Morre um policial para cada
grupo de 41,6 civis mortos em
supostos tiroteios, quatro vezes
o índice tolerado mundialmente. Não é necessário ser especialista para identificar a desproporção. A ONU e grupos de
direitos humanos vêem nos números indícios de execuções.
No curso da PM do Rio há
clara preocupação de condenar
e combater a corrupção interna. É um passo positivo. A violência policial letal, porém, permanece tolerada e até estimulada no discurso semi-oficial,
nas conversas com instrutores.
"Vocês vão aprender na rua:
deu tiro pelas costas, pega a arma, põe na mão do cara, dá um
tirinho e alega legítima defesa.
Talvez eu fizesse isso no calor
da emoção. Mas isso é na rua,
aqui não é lugar para aprender
isso", disse um instrutor.
Quando o governador do Estado diz a seus comandados
que a política é de "confronto",
ainda que o secretário de Segurança afirme que é de "desarmamento", fica evidente que
não há interesse em reduzir as
mortes de civis, bandidos ou
não. Sem treinamento, mudança de mentalidade e um urgente programa de redução da letalidade, o Rio continuará a bater
sucessivos recordes macabros.
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