São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003


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DANUZA LEÃO

A sabedoria

Quando a vida está ruim, é melhor não ficar se queixando. Não há nada pior do que uma amiga, por mais querida que seja, que passa o tempo todo se lamentando, seja da saúde, seja da falta de dinheiro, seja da falta de amor, seja das tristezas do mundo. Não, é melhor engolir todos os dissabores calada, mesmo correndo o risco de ter uma úlcera.
Mas quando a vida fica boa -o que às vezes acontece-, o amor legal, as contas pagas, e pinta um otimismo inesperado em relação à vida em geral, também é melhor não falar. Dizer que está feliz, que os filhos estão ótimos, que a situação financeira se acertou e que vai fazer uma viagem é quase uma agressão pessoal. Não, é mais prudente ficar quieta; quieta e muda.
Como se vê, a vida é difícil para quem está mal e para quem está bem, mas como dizem que falar é necessário, seja para se queixar, seja para dizer que está tudo ótimo, a gente até tenta; mas falar com quem? Como não se tem com quem abrir o coração de verdade, se vai ao cinema, se vê televisão, se lê um livro e se fica calada.
Para quem tem pai e mãe é mais fácil -esses estão sempre prontos a ouvir tudo dos filhos; em compensação, vão telefonar 500 vezes para saber se o contrato que parecia que ia pintar pintou, se a tosse já passou, se o bombeiro consertou a pia. Mãe, sobretudo, não costuma dar trégua, e quer sempre saber do desenrolar dos acontecimentos. Então é mais aconselhável dizer que está tudo bem, sem maiores detalhes, o que significa continuar na mesma, isto é, muda -como sempre.
Não dá para contar à faxineira, que não tem casa para morar e cujo filho está desempregado, que a vida está boa, que está feliz. Por mais que goste de você, com os problemas que tem e sem nem ao menos a esperança de que as coisas possam melhorar, não é humanamente possível que ela fique contente com a sua felicidade.
Pensando bem, é mais fácil encontrar alguém para ouvir nossas infelicidades do que nossos sucessos; quem ouve sente um certo prazer em escutar as queixas das pessoas de quem gosta. Assim se sente magnânima, pronta para ajudar -desde que não seja o tempo todo, claro. Mas quem ganhou na loteria, arranjou um namorado novo e vai comprar uma ilha em Angra deve ficar é bem quieta, para não despertar inveja e olho grande, o que é perigoso. Mas se não pode contar, qual é a graça?
Se os problemas e as tragédias às vezes afastam, a sorte e a felicidade afastam ainda mais, e a experiência ensina que não se deve falar nada a ninguém, sobretudo das boas coisas, sobretudo de dinheiro -quando está faltando, e muito menos quando está sobrando.
Quando seu namorado disser que te ama de paixão e que vocês vão fazer uma viagem no fim do ano, quando seu filho te der uma grande alegria, quando for promovida no trabalho, quando conseguir comprar um apartamento, quando estiver muito feliz, enfim, só conte isso a amigas que estão tão felizes como você, e por razões bem parecidas. Convenhamos: vai ser difícil encontrar essa amiga, por isso você vai acabar ficando quieta. Quieta e calada, como sempre.
Ou vai ter que fazer como os velhos, que falam sozinhos.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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