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RIO
Morador há 19 anos da maior favela da zona sul, cirurgião aposentado foi tachado de maluco quando mudou para o local
Médico encontra vida tranquila na Rocinha
ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO
GABRIELA WOLTHERS
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO DA SUCURSAL DO RIO
Na Rocinha, não há quem não
respeite o "Doutor". Morador
há 19 anos da maior favela da zona sul do Rio de Janeiro, ele sabe
que pode caminhar pelas ruas
de lá sem medo, mesmo morando
em uma habitação fora dos padrões locais. Sua casa, em estilo
colonial, fica num terreno com
mais de 10 mil m2.
O "Doutor" é o cirurgião aposentado Waldir Jazbik, 75. Sua casa poderia ser definida como a sede de uma pequena fazenda encravada em uma das maiores favelas urbanas do mundo. Lá, ele
cria mais de 200 patos, perus e galinhas, duas vacas, uma mula, oito
cachorros e passarinhos.
O tamanho do terreno deixa
claro que ele é um morador atípico de uma comunidade onde a
renda média dos chefes de família
é de R$ 451, de acordo com o Censo 2000. Seu CEP e as casas simples em volta, no entanto, não deixam dúvidas de que ele é, realmente, um morador da Rocinha.
Maluco
Jazbik está aposentado, mas é
um dos mais respeitados cirurgiões cardiovasculares do Rio.
Chefiou a equipe de cirurgia cardíaca do Hospital Universitário
Pedro Ernesto e é membro do
conselho editorial da "Revista
Brasileira de Cirurgia Cardiovascular". Quando decidiu se mudar
para a Rocinha, em 1984, foi tachado de maluco.
"Meus amigos da "high society"
diziam que eu era maluco. Eu poderia ter escolhido uma casa num
condomínio fechado aqui perto,
mas preferi vir para cá porque
nasci numa fazenda no interior
do Rio onde meu pai me ensinou
a tratar com respeito todo mundo. Sabia que não iria ter problema", afirma.
Foi também buscando esse clima simples de fazenda em que foi
criado que Jazbik escolheu a Rocinha. O leite, por exemplo, é tirado
das duas vacas que cria. A água
vem de uma nascente dentro do
morro e desce por um cano que
perfura 50 metros de pedra.
O abismo social entre o cirurgião aposentado e seus vizinhos é
compensado por esses hábitos
simples e, principalmente, pelo
bom relacionamento. "Não tem
vizinho melhor. Ele ajuda demais
e não pede nada a ninguém", conta Paulo Cezar, 50, morador da
Rocinha desde que nasceu.
"Se acontecer qualquer "parada"
com ele, eu entro na frente para
ajudar", diz Nicácio da Silva, 32,
outro vizinho. Todos conhecem
Jazbik na Rocinha como "Doutor". Das crianças, no entanto, ele
ganhou um apelido que acha engraçado: "Ricão".
O cirurgião é a antítese da paranóia da violência que acomete os
grandes centros urbanos do Brasil. Mesmo sendo considerado rico no meio de uma comunidade
pobre, o portão da casa de Jazbik
está sempre aberto. A confiança
se justifica. Os moradores gostam
tanto dele que garantem que, se
um dia entrar alguém estranho na
casa do "Doutor", descem todos
os vizinhos para ajudá-lo.
Talvez por isso nunca houve registro de assalto ou furto em sua
casa. Pelo contrário, Jazbik conta
que, quando uma galinha ou pato
foge de sua casa e vai para a favela,
os moradores rapidamente se
mobilizam para pegar o bicho e
devolver para ele.
Sua receita para viver na Rocinha com segurança é tão simples
quanto a galocha que usava quando recebeu a Folha em sua casa:
"Se você trata eles com respeito e
educação, eles te protegem. É como se falassem para todos: não
mexe com fulano porque ele tem
dez irmãos".
Prova desse respeito é que Jazbik conta que nunca o deixaram
pagar uma cerveja na Academia
do Cícero, bar que frequenta de
vez em quando na Rocinha. Ele
diz que por opção, e não por caridade, só usa os serviços dos moradores da favela: "Tem de tudo
aqui. É gente que aprende a ser
mecânico ou eletricista na Academia do Cícero".
Violência
Segundo a Polícia Civil, a Rocinha é o maior entreposto de drogas do Rio. O tráfico, controlado
pela facção criminosa Comando
Vermelho, faturaria cerca de R$
50 milhões mensais, beneficiado
pela localização nobre da favela,
em São Conrado. Essa realidade,
no entanto, não assusta Jazbik.
"Não vivo assustado porque
não tenho motivo para isso. Sei
que tem bandido na favela. Mas
também tem na Câmara, no Senado ou na avenida Atlântica. Os
homens que vivem aqui são de
uma honestidade a toda prova. A
maioria passa por privações, mas
nem por isso se desvia. Não sei se
eu ou você seríamos tão honestos
se passássemos pelo que eles passam", conta.
O medo da classe média alta do
Rio com a violência nas favelas é,
na sua avaliação, exagerado. "Somos mestres em falar do que não
conhecemos. Quem sempre morou em condomínio de luxo não
sabe como é viver aqui. O pessoal
aqui se ajuda. Eles me tratam com
respeito e nunca exigem nada em
troca", afirma.
Com o olhar de quem frequenta
os dois lados da cidade partida,
ele garante que há mais solidariedade entre os moradores da Rocinha do que em Copacabana.
"Tem uma curva aqui onde só
passa um carro por vez. Quando
vêem que o trânsito está complicado, os próprios moradores organizam o trânsito e, em dez minutos, tudo se resolve. Em Copacabana, se um carro parar para
uma velhinha descer, já colocam
logo a mão na buzina", afirma.
Avesso a entrevistas, Jazbik só
aceitou receber a Folha em sua
casa quando a reportagem lhe garantiu que o objetivo da conversa
era mostrar a boa relação dele
com os vizinhos.
"Tudo o que o senhor puder
evitar de referência a mim na
reportagem, por favor, evite. Eu
só quero mostrar que esse pessoal
é trabalhador e honesto. Não quero nada deles. Só vim para cá
porque quero viver a vida que eu
mereço viver", afirma o "Doutor"
da Rocinha.
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