São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003


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RIO

Morador há 19 anos da maior favela da zona sul, cirurgião aposentado foi tachado de maluco quando mudou para o local

Médico encontra vida tranquila na Rocinha

ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO

GABRIELA WOLTHERS
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO DA SUCURSAL DO RIO

Na Rocinha, não há quem não respeite o "Doutor". Morador há 19 anos da maior favela da zona sul do Rio de Janeiro, ele sabe que pode caminhar pelas ruas de lá sem medo, mesmo morando em uma habitação fora dos padrões locais. Sua casa, em estilo colonial, fica num terreno com mais de 10 mil m2.
O "Doutor" é o cirurgião aposentado Waldir Jazbik, 75. Sua casa poderia ser definida como a sede de uma pequena fazenda encravada em uma das maiores favelas urbanas do mundo. Lá, ele cria mais de 200 patos, perus e galinhas, duas vacas, uma mula, oito cachorros e passarinhos.
O tamanho do terreno deixa claro que ele é um morador atípico de uma comunidade onde a renda média dos chefes de família é de R$ 451, de acordo com o Censo 2000. Seu CEP e as casas simples em volta, no entanto, não deixam dúvidas de que ele é, realmente, um morador da Rocinha.

Maluco
Jazbik está aposentado, mas é um dos mais respeitados cirurgiões cardiovasculares do Rio. Chefiou a equipe de cirurgia cardíaca do Hospital Universitário Pedro Ernesto e é membro do conselho editorial da "Revista Brasileira de Cirurgia Cardiovascular". Quando decidiu se mudar para a Rocinha, em 1984, foi tachado de maluco.
"Meus amigos da "high society" diziam que eu era maluco. Eu poderia ter escolhido uma casa num condomínio fechado aqui perto, mas preferi vir para cá porque nasci numa fazenda no interior do Rio onde meu pai me ensinou a tratar com respeito todo mundo. Sabia que não iria ter problema", afirma.
Foi também buscando esse clima simples de fazenda em que foi criado que Jazbik escolheu a Rocinha. O leite, por exemplo, é tirado das duas vacas que cria. A água vem de uma nascente dentro do morro e desce por um cano que perfura 50 metros de pedra.
O abismo social entre o cirurgião aposentado e seus vizinhos é compensado por esses hábitos simples e, principalmente, pelo bom relacionamento. "Não tem vizinho melhor. Ele ajuda demais e não pede nada a ninguém", conta Paulo Cezar, 50, morador da Rocinha desde que nasceu.
"Se acontecer qualquer "parada" com ele, eu entro na frente para ajudar", diz Nicácio da Silva, 32, outro vizinho. Todos conhecem Jazbik na Rocinha como "Doutor". Das crianças, no entanto, ele ganhou um apelido que acha engraçado: "Ricão".
O cirurgião é a antítese da paranóia da violência que acomete os grandes centros urbanos do Brasil. Mesmo sendo considerado rico no meio de uma comunidade pobre, o portão da casa de Jazbik está sempre aberto. A confiança se justifica. Os moradores gostam tanto dele que garantem que, se um dia entrar alguém estranho na casa do "Doutor", descem todos os vizinhos para ajudá-lo.
Talvez por isso nunca houve registro de assalto ou furto em sua casa. Pelo contrário, Jazbik conta que, quando uma galinha ou pato foge de sua casa e vai para a favela, os moradores rapidamente se mobilizam para pegar o bicho e devolver para ele.
Sua receita para viver na Rocinha com segurança é tão simples quanto a galocha que usava quando recebeu a Folha em sua casa: "Se você trata eles com respeito e educação, eles te protegem. É como se falassem para todos: não mexe com fulano porque ele tem dez irmãos".
Prova desse respeito é que Jazbik conta que nunca o deixaram pagar uma cerveja na Academia do Cícero, bar que frequenta de vez em quando na Rocinha. Ele diz que por opção, e não por caridade, só usa os serviços dos moradores da favela: "Tem de tudo aqui. É gente que aprende a ser mecânico ou eletricista na Academia do Cícero".

Violência
Segundo a Polícia Civil, a Rocinha é o maior entreposto de drogas do Rio. O tráfico, controlado pela facção criminosa Comando Vermelho, faturaria cerca de R$ 50 milhões mensais, beneficiado pela localização nobre da favela, em São Conrado. Essa realidade, no entanto, não assusta Jazbik.
"Não vivo assustado porque não tenho motivo para isso. Sei que tem bandido na favela. Mas também tem na Câmara, no Senado ou na avenida Atlântica. Os homens que vivem aqui são de uma honestidade a toda prova. A maioria passa por privações, mas nem por isso se desvia. Não sei se eu ou você seríamos tão honestos se passássemos pelo que eles passam", conta.
O medo da classe média alta do Rio com a violência nas favelas é, na sua avaliação, exagerado. "Somos mestres em falar do que não conhecemos. Quem sempre morou em condomínio de luxo não sabe como é viver aqui. O pessoal aqui se ajuda. Eles me tratam com respeito e nunca exigem nada em troca", afirma.
Com o olhar de quem frequenta os dois lados da cidade partida, ele garante que há mais solidariedade entre os moradores da Rocinha do que em Copacabana.
"Tem uma curva aqui onde só passa um carro por vez. Quando vêem que o trânsito está complicado, os próprios moradores organizam o trânsito e, em dez minutos, tudo se resolve. Em Copacabana, se um carro parar para uma velhinha descer, já colocam logo a mão na buzina", afirma.
Avesso a entrevistas, Jazbik só aceitou receber a Folha em sua casa quando a reportagem lhe garantiu que o objetivo da conversa era mostrar a boa relação dele com os vizinhos.
"Tudo o que o senhor puder evitar de referência a mim na reportagem, por favor, evite. Eu só quero mostrar que esse pessoal é trabalhador e honesto. Não quero nada deles. Só vim para cá porque quero viver a vida que eu mereço viver", afirma o "Doutor" da Rocinha.


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