São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

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DANUZA LEÃO

O oposto da vida

Pobre de quem mora no Rio.
Dar uma volta pela orla de uma das cidades mais lindas do mundo tornou-se um perigo; além de as praias terem virado pontos de prostituição generalizados, são também os locais prediletos de marginais e pivetes. Claro: é lá que vão os turistas.
O comportamento do carioca foi mudando; sem perceber, as pessoas foram se trancando em casa, saindo cada vez menos; quando saem, fazem um exercício -que já se tornou automático- de pensar no itinerário mais seguro para chegar onde vão, mesmo que seja mais longo. Para quem não sabe: os túneis às vezes são fechados nas duas bocas, para facilitar o assalto a quem está dentro deles.
Muitas pessoas que conheço, depois de alguns assaltos nos sinais de trânsito, sendo que alguns violentos, agora só andam de táxi. Os saudosistas ainda se lembram do tempo em que saíam dirigindo em direção à Barra da Tijuca ouvindo um CD, o que hoje faz parte do passado.
Outro dia fui à casa de um amigo, em Ipanema. A noite estava linda, e pensamos em ir até a praia tomar uma água-de-coco. Não tivemos coragem de sair para fazer o melhor programa do Rio, o mais bonito, o mais charmoso, o mais barato, o que os turistas do mundo inteiro vêm procurar, de medo. De puro medo.
Na casa dos amigos que moram na Barra não se pode mais ir; na dos que vivem em Santa Teresa, também não. Fins de semana em Petrópolis ou Teresópolis ficaram perigosos, com a Linha Vermelha, e o único lugar em que as pessoas se sentem razoavelmente seguras é em casa, depois de entrar e fechar a porta -com a chave.
Mas agora nem isso: os assaltos são feitos a vários apartamentos do mesmo prédio por bandos vestidos de policiais. Em casa, o procedimento é, se a campainha tocar, não abrir para receber encomenda, embrulho, correspondência, nada. Nem perguntando quem é, nem ouvindo a voz do porteiro: afinal, o assaltante pode estar com um revólver apontado nas costelas dele.
Aí a gente pensa em viajar -até porque terrorismo dá menos medo do que um bando assaltando dentro de sua própria casa. Só que para chegar ao aeroporto é preciso passar pela favela da Maré, e só quem já passou por lá sabe o medo que dá. Os mais cautelosos viajam para o exterior de maneira meio complicada: eles pegam a ponte-aérea do Aeroporto Santos Dumont (que é no centro do Rio) até Congonhas, em São Paulo, de lá pegam um táxi para Guarulhos e só aí pegam o avião para bem longe -e na volta, a mesma coisa.
O perigo é serem assaltados em São Paulo entre os dois aeroportos, mas esse é um risco a correr.
A semana foi difícil, e depois que foram colocados 1.300 policiais nas favelas da Rocinha e do Vidigal, o medo aumentou: se toda a polícia foi mobilizada para a guerra do tráfico, significa que o resto da cidade está abandonada, o que dá mais medo ainda.
As ruas estão desertas, as pessoas, preocupadas, e todos os dias meu filho me telefona quando está saindo do trabalho e pergunta como vão as coisas, para saber se vai dar para ele ir para casa (ele mora na Barra). A primeira pergunta dele, quando atendo ao telefone, é "alguma novidade no front?". O que era uma brincadeira virou uma absurda realidade.
Já que somos todos responsáveis, acho que precisamos providenciar um banho de descarrego em todo o Estado do Rio. Muita cachaça, farofa e galinha preta nas encruzilhadas, muito incenso, muita flor no mar.
Só um grande mutirão unindo deuses e orixás poderá fazer alguma coisa pela nossa querida cidade, que, de uns anos para cá, só fez se afundar na lama.
Deve ter sido -só pode- trabalho daqueles bem carregados.
Um dia eu ouvi dizer que o oposto da vida não é a morte, mas o medo.
Pois é assim que temos vivido no Rio, dia e noite: com medo.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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