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DIREITO À SAÚDE
Número de sentenças que obrigam o Estado a fornecer remédios a doentes cresceu seis vezes e meia de 1996 a 2002
Justiça faz política de medicamentos em SP
FABIANE LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL
Há três semanas a Justiça deu
fim ao drama de R., de 39 anos, representante comercial. Concedeu
a ele o direito de receber imediatamente do Estado um remédio para o tratamento de um câncer gastrointestinal. A droga iria custar
R$ 6.000 mensais a R., que não tinha como pagar.
Na quarta-feira retrasada, o beneficiado foi V.. Naquele dia, a Secretaria de Estado da Saúde de
São Paulo recebeu a determinação judicial que garantiu a ele
acesso a um tratamento de seis
meses para a hepatite C, que custaria quase R$ 20 mil ao paciente
-dinheiro de que V. afirma não
dispor.
V. não tinha direito ao remédio,
o Interferon Peguilado, porque
não se encaixa nas normas de tratamento do Ministério da Saúde.
As ordens judiciais que resolveram o problema de R. e V. fazem
parte do rol de 600 determinações
que chegam por mês à Secretaria
de Estado da Saúde de São Paulo.
Como a maior parte das ações
que dão origem às ordens são individuais, é possível dizer que todos os meses pelo menos 600 pessoas conseguem, por meio da Justiça, acesso a remédios e tratamentos de alto custo, novos ou
experimentais, todos não ofertados pela rede pública.
Há seis anos, 80 pessoas eram
beneficiadas por mês pela Justiça-no período de 1996 a 2002, o
número de pacientes atendidos
cresceu seis vezes e meia.
Cada "boa nova" concedida pelo Judiciário a um paciente que vive uma situação dramática, no
entanto, demanda um rearranjo
do orçamento da Saúde, pois as
ordens determinam o custeio de
demandas que não foram previstas no planejamento anual.
A secretaria estima que cada nova ação, em média, custe pelo menos R$ 1.500 por mês aos cofres
do Estado (no pagamento do tratamento ou do remédio).
Isso significaria um impacto
anual imprevisto de pelo menos
R$ 10,8 milhões, equivalente hoje
a 6% dos gastos previstos com todos os remédios de alto custo dispensados pelo Estado a pacientes
atendidos em 2002 (veja quadro
nesta página).
"Quem está fazendo a política
pública em medicamentos novos
é a Justiça", afirma Alberto Kanamura, chefe de gabinete da secretaria. "Para a secretaria, 6% é muito, faz falta em outros programas.
E isso está crescendo. Em vez de
priorizar o coletivo, vou gastar em
esforço para o individual. Com a
velocidade que isso tem tomado, é
possível que, num curto prazo, a
gente não consiga controlar", diz
o chefe de gabinete.
No ano passado, a situação saiu
do controle no Centro de Referência e Tratamento de Aids da
secretaria. Cerca de 80% do orçamento previsto para a compra de
medicamentos no ano, R$ 3 milhões, foi consumido no cumprimento de ordens judiciais favoráveis a pacientes. A principal demanda era pelo remédio Kaletra,
que ainda não tinha sido incorporado ao rol de medicamentos para Aids fornecidos pelo Ministério da Saúde. "Tivemos de pedir
suplementação para que não faltassem os remédios previstos",
afirma Artur Kalichman, coordenador do programa de DST
(Doenças Sexualmente Transmissíveis)/ Aids do Estado.
Direito e dever
R. e V., os dois pacientes beneficiados nas últimas semanas por
decisões judiciais, fazem parte do
pequeno grupo de pessoas que,
por terem acesso à assistência jurídica, conseguiram obter o tratamento que desejavam. Esse grupo
vem aumentando.
R. não tinha como receber a
droga Glivec porque ela é fornecida pelo governo só para portadores de leucemia mielóide crônica,
um outro tipo de câncer. O vendedor pensava 24 horas em como
conseguir o remédio, receitado
pelo médico como única alternativa para o estágio de sua doença.
Por meio de uma conhecida,
conseguiu um advogado que não
cobrou nada para levar o caso à
frente. "Imagine quantas pessoas
que não tiveram como obter a
ajuda de um advogado já morreram", diz R..
No Estado de São Paulo, na quase totalidade dos casos, a Justiça é
favorável ao lado mais fraco, o do
paciente, segundo avaliação do
próprio Poder Judiciário.
A Constituição federal diz que
"a saúde é direito de todos e dever
do Estado" e garante a todos os
brasileiros o acesso universal, integral e igualitário à saúde. Pedidos de pacientes e decisões judiciais favoráveis a eles têm sido balizadas por esses princípios.
"As associações de pacientes demoraram muito para descobrir o
alcance da lei. O Judiciário é um
órgão que, quando provocado,
tem certa cautela até modificar o
procedimento. As primeiras decisões no Estado ocorreram a partir
de 95, 96", explica o juiz auxiliar
da 5ª Vara da Fazenda Pública da
capital, Carlos Bortoletto.
Segundo Marcos Bosi Ferraz,
diretor do Centro Paulista de Economia da Saúde da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo),
na maioria dos países a pressão
das ordens judiciais não existe,
pois foram estabelecidos limites
do atendimento na política nacional de saúde. André Reis, pesquisador do Núcleo de Assistência
Farmacêutica da Escola Nacional
de Saúde Pública da Fiocruz
(Fundação Oswaldo Cruz), diz
que falta no país uma "rede ampla
de informação sobre novas tecnologias" para esclarecer pacientes,
médicos e juízes. Essa seria uma
maneira de mediar os conflitos
entre pacientes e o Estado.
Cidadania
Há três anos, o Ministério Público do Estado de São Paulo criou
um grupo especializado em saúde
pública, o Gaesp, responsável por
uma série de ações civis públicas
em nome de pacientes sem tratamento. O grupo nasceu depois de
denúncias sobre drogas falsificadas, mas acabou absorvendo também as demandas dos sem-tratamento- hoje 40% do total.
Segundo o promotor João Luiz
Marcondes Júnior, do Gaesp, a
melhor organização dos pacientes
e a disponibilização de mais informações na mídia são fatores que
também explicam o crescimento
do número de ações e, consequentemente, das ordens judiciais. "Aquele paciente que procura a Justiça está exercendo a cidadania", diz Marcondes Júnior.
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