|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
DANUZA LEÃO
A raiva ajuda
Têm dias na vida em que
está tudo péssimo, e ela até
tenta um exercício mental para
saber o que poderia lhe trazer
algum prazer; mas logo descobre
que nada, rigorosamente nada,
pode melhorar aquele dia
tão ruim.
Tenta trocar uma idéia com os
amigos e vê que estão todos perfeitamente normais, alguns contentes, outros até felizes, o que
não dá a ela nem mesmo inveja.
Quando está muito mal, não existe, nem por um minuto, a esperança de que as coisas possam
melhorar. Está ruim e vai continuar assim para sempre (pelo
menos, é o que ela acha); e ainda
por cima não tem com quem falar
-aliás, tanto faz ter ou não ter.
Se estivesse chovendo, seria melhor, mas sofrer com sol e céu
azul, francamente, não combina.
Toma um tranquilizante ou uma
bebida? Nada: são 11h da manhã,
e o dia promete ser longo.
É angústia, angústia das brabas, e não adianta tentar disfarçar. Televisão não dá, ler nem
pensar, e conversar, só com alguém que esteja tão ruim quanto;
bem que procurou, mas as pessoas com quem falou estavam todas razoavelmente bem, o que só
fez piorar o seu estado. Paciência:
em algum momento vai passar;
vai ter que passar.
Resolve descobrir as razões que
a puseram nesse estado. No trabalho está tudo bem; nos amores,
nada de mais nem de menos; a família, OK, nenhuma traição de
amigo foi descoberta, a balança
está acusando o mesmo peso, as
contas estão pagas e a saúde anda
boa. Então? Mas é claro: há uma
semana, num gesto heróico, ela
deixou de fumar.
No princípio foi lindo: se sentiu
uma mulher tão maravilhosa, tão
cheia de força de vontade, que essa imagem foi mais forte do que
qualquer falta que pudesse eventualmente sentir do vício. Mas
hoje ela trocaria o carro por um
cigarro; o carro, os anéis, o apartamento, a alma, tudo, por aquele
ridículo tubinho de papel de dez
centímetros de comprimento,
cheio de tabaco dentro. Afinal, é
uma mulher ou uma barata?
Uma voz lá no fundo dela responde, bem baixinho: "uma barata",
e pior, sem o menor pudor.
Vamos falar sério: a vida não é
fácil, mas a gente vai conseguindo
vencer os obstáculos; até daquele
homem que amava desesperadamente conseguiu se esquecer, e
agora está sofrendo por um mísero cigarro? Não está certo, não pode se conformar de ser vencida
por um inimigo tão feio, malcheiroso, insignificante e idiota.
Segue as recomendações para
as horas do aperto: beber um
grande copo de água, sair do sofá
e dar uma volta no quarteirão,
pensar em outra coisa. Em chocolate? Numa praia do Nordeste?
Em Tom Cruise? Mas como,
se trocaria tudo isso e o céu também por um cigarro, por metade
de um cigarro de qualquer
marca, por duas tragadas, não,
por uma só, uma só resolveria
todos os problemas.
Vício safado esse; além de ser legalmente permitido, um maço
custa R$ 2, pode ser comprado em
qualquer botequim ou banca de
jornal, e ser vista fumando não é
-ainda- um gesto anti-social
que vai fazer desmoronar sua família, você ser demitida do emprego, internada numa clínica de
desintoxicação ou presa.
Agora ela não vai fumar só de
raiva e pensa em sugerir a nossos
caros governantes subir o preço
de um maço de cigarros para
R$ 30 e um mês de trabalho comunitário num hospital de doenças respiratórias a quem for apanhado fumando na rua, para não
dar o mau exemplo.
E, para quem quiser saber,
a raiva desse vício ridículo bem
que ajuda a passar a vontade
de fumar.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br
Texto Anterior: Bahia cadastra peças de seu acervo Próximo Texto: Há 50 anos Índice
|