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SP 450
Fotógrafo que vive em São Paulo desde 1930 acompanhou e registrou eventos que marcaram a história da cidade
História que as imagens contam
EDER CHIODETTO
EDITOR DE FOTOGRAFIA
Entre 1920 e 1930, Desidério
Farkas e a mulher, Tereza, cruzaram várias vezes o Atlântico entre
a Hungria, seu país natal, e o porto de Santos, ponto mais próximo
de São Paulo, onde em 1920 ele
abriu uma pequena loja de produtos fotográficos, a Fotoptica, na
rua São Bento, no centro da cidade. Numa dessas idas e vindas, em
1924, nasceu, do lado de lá do
oceano, Thomaz Farkas, que viria
a se tornar um misto de empresário, engenheiro e fotógrafo.
Na chegada definitiva da família
a São Paulo, Desidério perguntou
a Lászlo, seu sócio, como estava a
situação do país. A resposta foi
enfática: "O Brasil está em crise".
Desidério enxergou a possibilidade de contornar a tal crise ampliando seus negócios com a fotografia, então uma atividade que
não estava popularizada e que estimulava a curiosidade.
Dessa forma, em 1930, ele, sua
mulher e o pequeno Thomaz desembarcaram no porto de Santos,
subiram a serra do Mar e foram
morar na rua México, no Jardim
América, na capital paulista.
Curiosamente, na memória de
Thomaz não ficou gravada uma
imagem dessa viagem, mas sim o
cheiro de café queimado que exalava em torno da estação ferroviária de Santos. "Naquela época os
agricultores queimavam parte da
safra para não deixar cair o preço
no mercado. Eu me lembro daquele cheiro até hoje."
Thomaz foi matriculado na escola alemã Olinda, que tinha sede
na praça Roosevelt, onde estudou
até 1933. Com o recrudescimento
do nazismo na Europa, a família,
de origem judaica, decidiu transferi-lo para o Colégio Rio Branco,
então na rua Dr. Vila Nova.
Com os amigos do colégio e vizinhos da nova casa, na rua Itaperuna, no Pacaembu, Thomaz formou a "Esquadrilha Invencível",
um grupo de dez garotos que,
montados em suas bicicletas, percorriam as ruas sem asfalto do
bairro até a "biquinha", uma mina d'água no imenso descampado
onde mais tarde surgiria o estádio
municipal. Além da bicicleta, o
passatempo predileto de Thomaz
era a fotografia. "Como o papai tinha a loja, eu sempre tive acesso
às câmeras e filmes. Fotografei
muito desde criança."
NO ESTRIBO DO BONDE
Hoje, em sua casa, há inúmeros
álbuns com fotos dessa época.
"Um dos meus primeiros modelos foi o Hitler, um gatinho que tinha uma mancha com o formato
que lembrava o bigode de Adolf
Hitler", conta Thomaz.
Quando acabou o colégio, em
41, optou por estudar engenharia
na escola Politécnica. "Para chegar à escola era muito divertido:
eu andava até a esquina da avenida Paulista com a rua da Consolação, onde pegava o bonde. Ele estava sempre lotado e eu viajava
até a praça Ramos me equilibrando no estribo. Depois, atravessava
o viaduto do Chá e, no largo São
Bento, pegava um ônibus para a
Politécnica, que ficava na avenida
Tiradentes, ao lado da cadeia. Durante as aulas, a gente ouvia os
presos cantando: "Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós"."
Entre a faculdade e a loja na rua
São Bento, Thomaz passou a conhecer tudo o que havia de interessante. No Teatro Municipal, foi
atraído pelas imagens da Escola
de Bailado. No edifício Martinelli
ficava o cinema Rosário, um dos
melhores da cidade na época, onde o fotógrafo assistiu a estréia de
"Fantasia" de Walt Disney, em
agosto de 1941.
A fotografia de Thomaz Farkas
daria um salto de qualidade quando, no final da década de 40, o Foto Clube Bandeirante inaugurou
sua sede ao lado da Fotoptica, na
rua São Bento. O fotoclube organizava salões, acirrados concursos e foi um movimento que impulsionou a fotografia no Brasil.
Teve, nas figuras de artistas como
Geraldo de Barros, José Oiticica
Filho, German Lorca e o próprio
Thomaz Farkas, os fundadores do
que viria a ser conhecido como a
fotografia moderna brasileira.
As experiências fotográficas
dessa época levaram Farkas a ampliar seus temas. O estádio do Pacaembu passaria a ser personagem principal de um de seus trabalhos mais memoráveis. Quando o estádio foi inaugurado, em
abril de 1940, Thomaz e seus amigos assistiam aos jogos sobre um
morrinho que havia do lado de fora e de onde era possível avistar
apenas metade do gramado. Depois de algum tempo ele se tornou
amigo de um porteiro do estádio,
que liberava sua entrada. Nessa
ocasião pôde fotografar a torcida,
elegantemente vestida de terno e
chapéu, e os meninos que se apinhavam nos galhos das árvores na
tentativa de assistir aos jogos.
Durante a Segunda Guerra
(1939-1945), Farkas lembra de
aviões sobrevoando a avenida
Paulista. Em maio de 45, fotografou as festas nas ruas em comemoração ao fim do conflito.
Em 1946, ele se formou em engenharia mecânica e, em 47, casou-se e foi morar na rua Avanhandava, em uma casa construída pelo arquiteto Oswaldo Bratke,
hoje transformada em restaurante. Por essa época, começou a frequentar reuniões no Masp, quando a sede ainda era na rua 7 de
Abril, no prédio dos "Diários Associados", de Assis Chateubriand.
"Comecei a dar aulas de fotografia no museu e fiquei amigo do
Pietro Maria Bardi, da Lina Bo
Bardi e do Geraldo de Barros. Fui
uma das pessoas que assinou a ata
de fundação do museu. Em 1948,
eu faria no próprio museu minha
primeira exposição individual,
que foi também a primeira mostra de fotografia do Masp", conta.
Outro evento marcante para o
fotógrafo foram os festejos do
quarto centenário da cidade e a
inauguração do parque do Ibirapuera, em 1954. "Lembro-me de
um show memorável do Pixinguinha e seu grupo no Ibirapuera.
Foi um marco. Até então o samba
não era bem-visto em São Paulo e,
depois desse show, as coisas começaram a se modificar. Filmei
essa apresentação e estou pensando em transformá-lo num documentário", afirma.
Nos anos 60 Farkas documentou a construção e inauguração de
Brasília e passou a priorizar o cinema em detrimento da fotografia. "Quando acirrou o cerco da
ditadura, na metade dos anos 70,
recebi a visita de Joris Iven, um
documentarista holandês, que
projetou um filme dele, chamado
"Paralelo 17", para mim e para
uns amigos. O filme tratava da
guerra do Vietnã. No meio da
projeção um "amigo" levantou,
disse que aquilo era coisa de comunista, saiu e me denunciou. Fiquei detido por uma semana no
Doi-Codi da rua Tutóia, no Paraíso. Foi apavorante", conta.
QUANDO A CRISE CHEGA
Após a morte de seu pai, Thomaz passou a dirigir a rede Fotoptica, que chegou a ter mais de 20
lojas, abriu uma galeria, a primeira a priorizar a fotografia em São
Paulo, e lançou a revista "Novidades Fotoptica", que durante seus
110 números movimentou o cenário da fotografia brasileira. Há seis
anos rendeu-se à tal crise anunciada pelo sócio de seu pai em
1930 e vendeu a rede para o banco
que lhe cobrava pesados juros.
Mas o prazer de circular pelo
centro persiste: "Hoje vou menos
para a região da rua São Bento,
mas gosto muito de passear por lá
e perceber as mudanças. Mudaram a paisagem, as lojas, o estilo
das pessoas. Tem muito mais gente circulando. Não sou nostálgico,
gosto de viver o tempo presente.
Acho a cidade excitante, viva. A
nostalgia eu deixo nos álbuns de
fotografia que gosto de fazer e
preservar. Meus netos adoram
olhar esses álbuns e ver como era
a cidade. De alguma forma a memória da cidade irá perdurar nas
minhas fotografias", afirma.
Visite o site dos 450 anos de São Paulo na
www.folha.com.br/especial/2003/saopaulo450
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