|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
SP 450
Ex-professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, jurista relembra suas oito décadas de história em São Paulo
A vida junto às Arcadas
ALESSANDRO SILVA
DA REPORTAGEM LOCAL
O menino Miguel Reale desembarcou em São Paulo quando a cidade ainda respirava os novos e
polêmicos ares da Semana de Arte Moderna de 1922. Tinha apenas
11 anos e vinha acompanhado do
pai, o médico italiano Braz Reale,
que o trazia de Itajubá (MG) para
estudar em um colégio interno.
Após dez horas de viagem, os dois
desceram na estação do Brás.
"São Paulo era uma cidade pequena, de 400 mil habitantes no
máximo. Provinciana, mas tinha
uma característica própria: o
Anhangabaú, com dois prédios
em estilo francês, como o Teatro
Municipal [réplica menor da ópera de Paris]. O centro era formado
pelo triângulo das ruas 15 de Novembro, São Bento e Direita."
Foi nessa região que o jovem
Reale cresceu, descobriu sua vocação para as leis e encontrou o
lugar que marcaria sua vida na capital paulista: a Faculdade de Direito do Largo São Francisco.
Criada em 1827 pelo imperador
dom Pedro 1º, saíram dali personalidades importantes da história, como os presidentes Prudente
de Morais e Afonso Pena, além de
magistrados, jornalistas e poetas.
"A faculdade de direito é a grande expressão da minha vida, onde
publiquei as obras fundamentais
iniciais", afirma.
Quando chegou, o pai do novo
Código Civil, que entrou em vigor
neste ano, era apenas um interno
do Instituto Médio
Dante Alighieri, na
alameda Jaú, que
muito influenciou
o seu futuro. Em se
tratando de um colégio estrangeiro, Reale teve de
aprender italiano. Isso o fez retornar um ano em seus estudos e conhecer a mulher com quem se casaria mais tarde, Filomena Pucci
Reale, ou simplesmente Nuce.
Os conhecimentos de latim,
aprendidos ali ao longo de sete
anos, foram o passaporte para a
faculdade de direito. De quebra,
interrompeu uma tradição de seis
gerações de médicos na família.
Durante um ano, o garoto Reale
viveu sozinho em São Paulo, morando na escola. Saía nos finais de
semana para ver os padrinhos na
rua Brigadeiro Luís Antônio. Dali,
costumava ir ao cinema -mudo-, na Bela Vista, onde eles tinham um camarote. Os filmes de
faroeste eram os preferidos dos
adolescentes, lembra.
"No começo do Anhangabaú tinha um bar com um serviço de telefone ligado diretamente ao estádio do Palestra, no Parque Antártica, ou onde houvesse futebol.
Eles irradiavam o jogo através do
telefone e o povo ficava ali ouvindo, sentado em mesas, tomando
chope e comendo salgadinhos",
recorda. Veio daí o amor pelo Palestra Itália, hoje o Palmeiras.
Em 23, o pai de Reale se transferiu para São Paulo, após sofrer
um acidente. Não podia mais
montar para atender seus pacientes em Itajubá (MG). Ambos foram viver em uma pensão, ao lado da praça do correio central.
Um ano mais tarde, a família se
mudou para a rua Florisbela, no
início da rua Augusta, quando estourou a Revolução de 24. Dali,
podiam ouvir o barulho de explosões, dos tiros, que vinham da região da Saracura Grande, atual
avenida 9 de Julho, onde estavam
posicionados canhões dos revolucionários. No lar dos Reale, o porão virou abrigo de guerra.
Em 1930, Reale ingressou na faculdade de direito "levando um
trote tremendo". "Os veteranos
nos prenderam com arame farpado, passando pelo paletó. Fizeram
uma fila e toma tomar pinga e
cantar bobagens, do largo São
Francisco até a praça do Patriarca,
atravessando o viaduto do Chá",
afirma. Na praça da Sé, eles entraram de paletó e gravata no lago.
Tal selvageria, como define Reale, levou a turma a rever o trote do
ano seguinte. Em vez do arame,
os novos estudantes fizeram uma
passeata contra Getúlio Vargas.
Nesse momento da vida paulistana, a faculdade de direito era o
principal pólo cultural de São
Paulo. "Quem tinha vocação para
arte e letras não tinha outro caminho senão o direito. Era a faculdade das ciências não-tecnológicas.
Ou se era médico ou engenheiro."
E também estava ali, nas famosas Arcadas, o principal centro
político, de onde partiam sérios
ataques ao interventor nomeado
para São Paulo. "Os estudantes faziam sua bagunça, sua agitação
fora, e, na hora em que a polícia
[estadual] aparecia, eles se refugiavam na faculdade, que era o
território livre de São Francisco, e
chamavam o Exército". Sob o pretexto de proteger o patrimônio federal -a faculdade era da
União-, os militares impediam a
ação dos policiais estaduais.
Nessa época, os bares do centro
eram os principais pontos de encontro dos estudantes. O mais famoso deles, segundo Reale, chamava-se Cidade München e ficava na ladeira Doutor Falcão, indo
para a praça do Patriarca. "Havia
um campeonato para ver quem
bebia mais chopes. Eu era um
bom bebedor, mas não chegava a
ganhar porque tinha campeão
que bebia de 50 a 70 chopes em
uma única noite", conta. Havia
também o bar Ponto Chic, no largo do Paissandu.
A vida política fervilhava no
país e na faculdade. Em 1932, aos
22 anos, Reale publicou seu primeiro artigo em um jornal de estudantes: "A Crise da Liberdade
Diante da Ameaça Socialista",
que pregava a conciliação entre o
liberalismo e o socialismo.
Com a explosão da revolução de
32, o estudante Reale virou um
sargento, recebeu farda e um fuzil
velho. Antes mesmo que seu batalhão estivesse formado ou treinado, haviam embarcado para a
fronteira com o Paraná, em Taquari e Taí, no interior do Estado.
No front, ficou doente e teve de
se afastar das trincheiras para serviços de comunicação. "No nosso
setor não houve batalhas maiores
até o dia em que os sulistas vieram
com grande poder de tiro. Tínhamos uma só metralhadora. Fomos levados de roldão e demos
início à maior retirada da história,
que só acabou em Botucatu."
De volta à capital, Reale e demais amigos de turma foram
aprovados pelo terceiro ano consecutivo nos exames finais, dispensados por causa
do conflito.
Em 32 começou a
amizade com o integralista Plínio Salgado, sua entrada no
movimento e a publicação, com a
ajuda do novo amigo, do primeiro livro, "O Estado Moderno".
Nesse período, os camisas-verdes
se reuniam em uma casa emprestada, no início da Brigadeiro Luís
Antônio.
Sobre o movimento, o confronto de 33 é uma das lembranças
mais marcantes. No primeiro desfile, na praça da Sé, integralistas e
comunistas se enfrentaram em
frente do edifício Santa Helena,
que já não existe mais. Dois integralistas morreram baleados.
Quatro anos mais tarde, o integralismo acabou.
Advogado formado e professor
de latim e francês, Reale montou
um escritório com amigos na rua
São Bento, no centro, perto do largo São Francisco, e, em 1935, casou-se com Nuce, a ex-amiga do
colégio Dante Alighieri. O casal
foi morar em uma casa alugada
na alameda Santos.
O paulistano dos anos 20 e 30
costumava frequentar os clubes
Tietê 1, dos brasileiros, e Espéria,
dos italianos, nos finais de semana. Limpo, o rio Tietê era palco de
competições de nado e de remo
ou servia como simples recreio
para os dias de calor.
Em 1940, Reale voltou à faculdade de direito, agora estadualizada,
para disputar uma vaga de professor de filosofia, em um tumultuado concurso que acabou sendo
anulado. Após recorrer ao então
presidente Getúlio Vargas, ele
conseguiu a vaga.
Em 1949, Reale assumiu a reitoria da USP (Universidade de São
Paulo), dando início ao processo
de interiorização da instituição,
com a criação de cursos em Ribeirão Preto, Bauru e São Carlos. Ele
retornaria ao cargo em 69.
Por duas vezes, ocupou a Secretaria da Justiça, no governo de
Ademar de Barros, em 47 -ano
em que comprou o primeiro carro, aos 37 anos- e em 63.
Desde a faculdade, Reale escreveu mais de 50 livros, alguns traduzidos para outros idiomas, entre obras de direito e poemas.
Até hoje, o professor mantém a
tradição diária de passar pelo escritório de advocacia, na avenida
9 de Julho, onde o filho Miguel
Reale Júnior, ex-ministro da Justiça, também trabalha.
Texto Anterior: Frase Próximo Texto: Gilberto Dimenstein: Os seres humanos que viraram linguiça Índice
|