São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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DANUZA LEÃO

Se eu fosse ela

Se eu fosse Marisa, não ia morar no Palácio da Alvorada nem morta; ia ser bem feliz na Granja do Torto e só iria ao mais lindo aquário do mundo para mostrar aos amigos de São Bernardo ou quando fosse receber para jantares oficiais.
Já pensou chegar numa casa enorme sem nem um cantinho para ouvir um disco sossegada, ser apresentada a cozinheiros, copeiros e arrumadeiras que nunca viu na vida (e ter que decorar os nomes), dizer se prefere o bife bem ou mal passado, se no café da manhã prefere suco de laranja ou de maracujá, que costuma dormir com cobertor e tem alergia a travesseiros de pluma, se faz dieta ou não, que tem horror a abobrinha, que aquele vidrinho de remédio tem que ficar na mesa de cabeceira para não esquecer de tomar? Abrir sua intimidade para pessoas inteiramente desconhecidas, de um dia para o outro? Já basta ter que arranjar um cabeleireiro e uma manicure novos, os dois puxando conversa e prestando atenção em tudo, cruzes.
E tem mais: passar a dormir em lençóis que, mesmo sendo maravilhosos, não foram escolhidos por você, encontrar no banheiro sabonetes e pasta de dentes de marcas diferentes das que costuma usar -eles não podem adivinhar quais as que prefere- e cruzar nas salas, de manhã, à tarde e à noite, com diplomatas de terno escuro, todos muito gentis, amáveis e extremamente bem educados, sempre dando dicas sobre o protocolo numa linguagem meio cifrada -diplomatas nunca falam as coisas pão pão queijo queijo; já imaginou o desconforto? E almoçar e jantar sentada na mesa sendo servida à francesa todos os dias da vida? E na noite em que estiver vendo aquele filme na televisão, será que pode pedir o jantar numa bandeja, ou nos palácios não pega bem? Eu morria.
Se eu fosse ela, me instalava na Granja do Torto e levava comigo uma cozinheira que estivesse muito acostumada a fazer as coisas do jeito que eu gosto, que já está cansada de saber que a rabada deve ser um pouco gordurosa -Lula, aliás, subiu muito no meu conceito, quando li isso num jornal- e uma arrumadeira com quem eu pudesse falar alguma coisa sobre um dos meus filhos, que ela conhece bem, e até reclamar um pouco da vida, quando fosse o caso, como se faz com empregadas que estão na família há muito tempo. Ter uma casa onde tivesse o direito de entrar na cozinha e abrir a geladeira, o que no Alvorada deve ser difícil.
Se eu fosse Marisa, faria um rodízio com irmãs, primas e amigas, para ter sempre por perto uma pessoa muito íntima e de confiança, que não conhecesse um só jornalista, para descobrir comigo esse mundo novo do poder, das etiquetas e dos protocolos. Para compartilhar certos deslumbramentos e também poder abrir o coração e dizer que tem horror a algumas obrigações que vai ter que assumir, como tomar chá com as embaixatrizes, por exemplo.
Quando não se tem com quem reclamar, a vida fica um inferno, e como o marido vai estar muito ocupado, já viu.
Aquele futebolzinho nas tardes de domingo não combina com o Alvorada; um chute mais violento pode quebrar um vidro do palácio, que pelo tamanho deve custar caríssimo. A família deve ter passado o último domingo muito feliz na Granja do Torto com os filhos e os amigos mais chegados, e esses momentos precisam ser preservados; com a família do presidente feliz, o Brasil vai ser mais feliz.
Se eu fosse Marisa, ficava bem na minha, e continuaria entrando e saindo de todos os lugares de braço dado com Lula, coisa que talvez não condiga com o protocolo; afinal, um chefe de Estado deve entrar na frente -imagino- e a mulher atrás.
Se eu fosse ela, não deixaria que ninguém mudasse meus hábitos, meu comportamento, minhas atitudes, não me esqueceria nem por um minuto que Lula foi eleito para mudar o Brasil, e que exatamente por isso queremos que ela e nosso novo presidente continuem exatamente como são.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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