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Trajetória do criador da Cofap se confunde com a história do automóvel em São Paulo
Sonho sobre rodas nas ruas da cidade
LUIZ CAVERSAN
DA REPORTAGEM LOCAL
Desde criança, quando brincava
pelas ruas do bairro do Brás,
Abraham Kasinski sempre teve
um sonho: fabricar um automóvel. Hoje, aos 86 anos, ele produz
motocicletas e um veículo de três
rodas que copiou de modelos
muito comuns na Europa, sobretudo na Itália, e na Índia. Mas ele
afirma que, sim, ainda vai fabricar
o seu carro, "mas só se for para
vender barato, uns R$ 8.000."
A se basear na história desse
descendente de judeus russos que
passou a vida, de uma maneira ou
de outra, ligado a veículos automotores, em breve haverá um novo veículo brasileiro nas ruas. Ele
não entra em detalhes, mas o projeto está avançado, e tem a referendá-lo uma vida de empreendimentos que se confundem com as
últimas oito décadas de história
da cidade de São Paulo.
Abraham Kasinski nasceu no
dia 11 de julho de 1917, não na residência da família (esquina da
avenida Celso Garcia com a rua
Bresser), como era habitual naquela época. "Meu pai já era meio
abonado, então nasci na maternidade do Tatuapé", diz ele.
Os primeiros anos da infância
foram todos vividos pelas ruas do
bairro, que ainda não ostentava a
vocação para o comércio de confecções, que surgiria anos depois e
permaneceria até hoje. "Havia algumas indústrias e muitas casas
de famílias de classe média. Meu
território era ali pela Bresser, pela
rua Silva Telles, largo da Concórdia e rua Joli.
"Nesta última -recorda Kasinski- havia o cinema Brás Politheama, onde eu ia todos os domingos. Tinha de me virar, com o
pouco dinheiro que meu pai me
dava, para pagar o ingresso e ainda comprar um tostão de balas
Passarinho. Mas valia a pena,
principalmente por causa dos seriados, que demoravam seis meses, um ano para acabar e nos
quais o mocinho nunca morria.
Ele sempre levava o tiro no lado
direito do ombro, nunca acertavam o coração."
Mas o "ponto" de Kasinski era
mesmo no negócio do pai, a Loja
do Leão (derivado do nome
Leon), que funcionava junto à casa da família e que deu origem a
toda uma linhagem de negócios
ligado aos automóveis.
Ali ele começou a realizar seu
sonho, usando rolamentos velhos
("A gente ainda chamava rolimã
de roda alemã") para fazer e vender patinetes. "Não se pode negar
que o patinete é um veículo com
um cavalo de força", diz, rindo.
Conforme Kasinski, o negócio
de seu pai não vendia acessórios.
"Não era uma loja para enfeitar
automóveis, mas sim de peças
que gastavam e precisavam ser
substituídas. Ou seja, tudo o que
se referia a peça de reposição, a loja Leão tinha para vender. Era um
negócio pioneiro. Meu pai foi, durante muito tempo, o maior vendedor de pneus de São Paulo."
Muitos dos pneus eram usados.
Por isso, antes de chegarem aos
olhos da clientela, passavam pelas
mãos do pequeno Abraham para
ficarem mais apresentáveis. "Eu
colocava manchão, raspava as
partes feias, essas coisas."
As peças e pneus, assim como
todos os veículos da época, eram
importados, e a boa relação do pai
com os representantes das marcas
de veículos que chegavam ao Brasil (Ford, GM, Chrysler etc) garantia, segundo ele, preços imbatíveis. "Meu pai comprava, por
exemplo, todo o estoque dos
pneus que estavam saindo de linha. Assim, ele conseguia, depois,
vender muito mais barato do que
os concorrentes."
Era um negócio de fato promissor, bastando, para confirmar isso, recordar que a frota de automóveis oficialmente registrados
na cidade de São Paulo passaria
de 1.700 unidades na década de
1910 para 31.200 veículos nos anos
40, chegando a 76 mil nos 50.
Antes desse "boom" automobilístico e de reforçar a paixão pelos
automóveis, porém, Abraham
Kasinski arrumou outro amor: o
Corinthians. Nos anos 20 ele começou a frequentar as ainda incipientes dependências do clube,
até hoje localizadas às margens do
rio Tietê, mais para o leste da cidade, junto ao bairro do Tatuapé, no
Parque São Jorge. "A primeira
piscina do clube funcionava num
cocho de madeira que ficava flutuando no Rio. Eu remei muito no
Tietê e gostava demais de ir aos
bailinhos promovidos no clube. O
pior é que eu não sabia dançar.
Mas, mesmo que levasse dez "tábuas", sempre acabava saindo
com alguma menina", lembra.
Também nessa época ele foi estudar no Colégio do Carmo, de religiosos católicos, o que se chocava com suas origens judaicas.
"Como eu era de outra religião,
me obrigavam a assistir aula de
catecismo de pé. E também era
obrigado a ir à missa, na igreja
Bom Jesus do Brás. Quando o padre me perguntava se eu tinha
confessado, mentia e dizia que
sim. Aos sábado, ia com a família
à sinagoga da rua Bresser, que
aliás, foi construída por meu pai."
O pioneirismo da autopeças
Leão se repetiu quando o pai de
Kasinski decidiu colocar, em
1924, uma bomba de gasolina na
loja, uma inteira novidade, também passando a praticar preços
abaixo do mercado. "A mangueira da bomba era muito comprida,
então o que ele dava de desconto
acabava ganhando na mangueira.
Eu sei que vinha gente de longe,
até de Higienópolis, para encher o
tanque ali no Brás. Meu pai ganhou muito dinheiro lá, chegou a
vender 1.000 litros de gasolina por
dia, o que era uma enormidade."
O sucesso da bomba de gasolina
foi tamanho que Leão Kasinski
resolveu abrir uma outra, perto
da rua Piratininga, sempre na Celso Garcia, fundando, segundo Kasinski, o primeiro posto de serviços da cidade.
"Eu fui trabalhar lá, ao mesmo
tempo em que estudava na Escola
de Comércio Álvares Penteado,
no Largo São Francisco, onde,
aliás, entrei falsificando um documento, porque não tinha a idade
mínima exigida. Naquele tempo
eu pegava o bonde perto da rua
Rubino de Oliveira, onde havia a
antiga cocheira dos burros, que
depois virou garagem dos bondes
elétricos. Eu ia pendurado no estribo e, quando o cobrador chegava, saltava e pegava o bonde de
trás. Fazia isso até chegar no centro, para não pagar o bilhete, porque o salário que recebia do meu
pai era muito pequeno."
O trabalho no posto trouxe problemas de saúde para Kasinski.
Conforme relata, para dar conta
do recado tinha de trabalhar à
noite. Uma de suas obrigações era
lavar os veículos, inclusive ônibus. Acabou pegando uma pneumonia e teve de passar uma temporada de tratamento em Atibaia.
"Era para lá que pessoas com problemas no pulmão eram mandadas. Muito depois é que se passou
a falar em Campos do Jordão..."
Até morrer em 1941, conta Kasinski, seu pai "ganhou muito dinheiro e se tornou muito conhecido na cidade, como o comerciante de produtos para automóvel
que vendia mercadorias de qualidade a preços baixos."
Logo depois de Kasinski se formar, em 1933, a família deu um
salto nos negócios, construindo
um grande edifício entre a avenida São João e a alameda Barão de
Limeira, próximo à avenida Duque de Caxias, numa região que se
tornaria, anos depois, importante
centro comercial de produtos automotivos. A loja Três Leões, que
funcionava no andar térreo do
prédio, tornara-se uma gigante
no ramo das peças, e Kasinski fazia viagens frequentes aos Estados
Unidos para negociar produtos
que venderia para a manutenção
dos carros que circulavam no
Brasil.
"Havia uma turma que só andava com os carrões chiques. Eram
Buicks, Fords, GMs. A gente se
reunia no largo Paissandu, em
frente ao Ponto Chic", recorda,
referindo-se ao tradicional bar e
restaurante da cidade, no qual foi
inventado o sanduíche bauru.
"Havia um ponto de táxi ali em
que os motoristas eram rufiões da
prostituição de luxo da rua Amador Bueno, onde as mulheres falavam com sotaque francês."
Com os negócios e a sociedade
com o irmão Bernardo à toda, já
casado e morando em Pinheiros,
próximo à avenida Rebouças, Kasinski deu mais um passo em direção ao seu sonho de construir
um carro: decidiu montar uma
indústria de autopeças. Em vez de
importar, copiar os originais e fazer por aqui mesmo as peças de
reposição.
Foi assim que nasceu, em 1950, a
Companhia Fabricadora de Peças, a Cofap, marca que pertence à
história da indústria de São Paulo
e do Brasil -ficou conhecida
com o slogan "é Cofap, é de confiança", que foi usada por décadas, e pela propaganda de amortecedores que tinha como personagem um cachorrinho basset.
Após pesquisar a demanda, comprar as máquinas e montar a equipe, Kasinski pôs a Cofap para
operar três anos depois, produzindo componentes de motor.
Pouco tempo à frente, tinha na linha de montagem peças para todas as marcas de carros em circulação no Brasil, inclusive, e principalmente, os amortecedores que
fizeram a fama da marca.
Paralelamente a isso, as lojas
Três Leões também prosperavam. Além da unidade original do
Brás e aquela instalada no prédio
da São João, surgiram outras em
Pinheiros, Lapa, no Rio, em Fortaleza e em Recife.
Exceto por contratempos financeiros no final dos anos 50, foram
praticamente 40 anos de sucesso
na Cofap, sobretudo a partir da
instalação da indústria automobilística no país. "De uma hora para
outra passamos a fornecer 1.000
blocos de motor por dia para a
Volkswagem. Tivemos que nos
adaptar rapidamente, do padrão
americano, no qual tudo era medido em polegadas, para o europeu, baseado em centímetros. Eu
não tinha idéia, então, de quanto
iríamos crescer. Como podia imaginar que a Volks poderia fazer
dois milhões de automóveis e que
a Mercedes iria produzir tantos
caminhões?"
Cresceu, sim, e muito: a Cofap
chegou a ter nada menos que 18
fábricas, inclusive na Argentina, e
cerca de 35 mil funcionários.
Enquanto exercia o papel de industrial de sucesso, Kasinski dedicou-se também a outras paixões: o teatro e a pintura. "Eu
sempre gostei tanto de teatro que
até fazia parte de claque, só para
estar lá todo dia. Adorava ir aos
teatros Boa Vista, ao Paramount e
ao TBC para aplaudir os espetáculos", afirma.
Quanto à pintura, acabou se
tornando um "pequeno" colecionador. "Não tenho muita coisa
não. Apenas um quadro de Chagall, três de Portinari, 10 de Di Cavalcanti, cinco de Cícero Dias e alguma coisa dos mexicanos Siqueiros, Orozco e Rivera."
Depois de se desfazer do grupo
de lojas Três Leões, vendido ao
conglomerado francês Presunic,
que encerrou os negócios, Kasinski afirma que foi obrigado, há sete
anos, a também vender a Cofap
por desavenças. "Eu não aguentava mais", diz.
"Acabei vendendo a Cofap no
auge. Naquele ano, 1996, tivemos
US$ 1 bilhão de faturamento. Fui
muito burro ao vender...", afirma.
E, ainda em suas palavras, continua "burro, vaidoso e pretensioso", porque, em vez de se aposentar e "ir passear na Europa", acabou montando, em 98, outro negócio para fabricar motocicletas e
motonetas. Já participa de fatia
expressiva no mercado de duas
rodas e fabrica mensalmente pelo
menos 300 veículos de três rodas,
copiado de modelo italiano da
marca Piaggio. "Sou um copiador
emérito, graças a Deus", diz.
"E o pior -afirma na ampla
sala de seu escritório da avenida
Pacaembu- é que não abandonei o sonho de fabricar um carro,
um carro barato, de cerca de R$
8.000. Sabe por que eu sonho?
Porque quem não sonha não olha
para a frente, não tem idéias avançadas."
Visite o site dos 450 anos de São Paulo na
www.folha.com.br/especial/2003/saopaulo450
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