|
Texto Anterior | Índice
GILBERTO DIMENSTEIN
A menina que dá aula para o Brasil
Numa reprimenda pública, o presidente Lula reclamou, na quarta-feira passada,
das pressões do ministro Cristovam Buarque por mais recursos
para a educação. "Quem tem
pressa come cru", afirmou, argumentando que "criatividade" e
"motivação" compensariam a
falta de dinheiro.
A pressa do ministro é explicada por estatísticas oficiais divulgadas um dia antes daquele conselho presidencial: 60% dos estudantes da 4ª série do ensino fundamental revelam níveis "críticos" ou "muito críticos". Significa,
em poucas palavras, que não sabem ler ou não entendem o que
lêem, além de não dominarem os
rudimentos da matemática. Apenas 2% dos alunos do Nordeste
desenvolveram habilidades satisfatórias de leitura.
Lula talvez não saiba, mas educador que é educador prefere correr o risco de comer cru do que
não ter pressa; afinal, conhece de
perto o custo da ignorância.
Graças a esses números e à inesperada reprimenda pública do
presidente a seu ministro, conseguiu-se colocar a educação, mesmo momentaneamente, no topo
da agenda política brasileira.
Cristovam só disse o que luminares da inteligência brasileira sempre têm dito -a educação deve
ser prioridade- e Lula repetiu o
que os presidentes têm repetido,
ao dizer que sobra vontade, mas
falta dinheiro.
Instalou-se o debate porque
muita gente acha que, além da
falta de dinheiro, o problema é o
desperdício, ou seja, má gestão
dos recursos; outros dizem que,
mesmo que se resolvam os desperdícios, ainda faltarão recursos.
Alheia aos argumentos dos
adultos, quem está dando uma
monumental aula de educação é
Aline Silva Santos, de 13 anos,
uma estudante de escola pública
em São Paulo. No ano passado,
ela criou no quintal de sua casa
uma escola para dar reforço a
alunos com dificuldades de
aprendizagem. "Queria ensinar o
que tinham me ensinado", conta.
Com outras amigas, todas da
sua idade, ela dá aulas de história, geografia, matemática, português e ciências, utilizando como provocação debates sobre
atualidades -a guerra no Iraque, por exemplo.
Resultado da escola no quintal:
melhoria do aprendizado dos
alunos, todos de periferia. Quanto
se gastou para isso? Nem um centavo sequer.
Naquele pequeno quintal de periferia, aprende-se a seguinte lição, comprovada mundialmente:
o envolvimento comunitário é
uma peça decisiva para a educação pública.
Professores motivados, comunidade engajada e participação dos
pais são elementos essenciais da
boa escola -e, de fato, otimizam
os recursos públicos. Mesmo que a
professora tenha 13 anos e a escola funcione num quintal.
Tenho acompanhado de perto,
no bairro em que moro, em São
Paulo, uma experiência realizada
por educadores que transformaram uma praça em uma extensão
da sala de aula, aonde os estudantes vão antes ou depois da escola -normalmente, ficariam na
rua ou trancados em casa vendo
televisão.
A experiência, batizada de Escola na Praça, transforma em sala de aula não apenas a praça
mas também oficinas, estúdios,
ateliês, livrarias, cafés, becos,
compondo um roteiro educativo
por onde passam as crianças. Resultado: surgem indivíduos curiosos, interessados, abertos ao conhecimento.
A partir desse tipo de experiência, que vi em diferentes modalidades e em várias partes do mundo, passei a acreditar que uma
das soluções para a educação é o
bairro-escola. Ou seja, descobrir
potenciais educativos na comunidade, onde se pode, por exemplo,
ensinar leis da física numa oficina mecânica, geometria numa
marcenaria, anatomia num
açougue, história num cinema,
geografia num museu, literatura
numa livraria, química numa fabriqueta de vela, artes plásticas
num beco abandonado. Simplificando: a cidade é uma extensão
da escola e a escola é uma extensão da cidade.
Nada disso, no entanto, vai funcionar se não for feita a mais óbvia lição de casa: adequada preparação e remuneração dos professores, implantação de laboratórios de ciências e de informática
bem equipados, adoção de bons
materiais didáticos e, acima de
tudo, a atuação de um diretor
que seja um líder.
Isso tudo custa dinheiro -e
não há motivação nem criatividade que interfiram, de forma
consistente, nas estatísticas divulgadas na semana passada, que
deixam o ministro com pressa.
É o tal ditado: se você acha que
educação custa muito dinheiro,
veja por quanto sai a ignorância.
PS - O publicitário Washington
Olivetto informa a esta coluna
que o nome Aline significa, em
celta, "agulha", representando a
criança que tem uma visão profunda do mundo. Olivetto não virou filólogo. Acontece que ele foi
salvo por uma Aline (Aline Dota),
a estudante de medicina que, com
um estetoscópio, descobriu que
ele estava num cativeiro e salvou-o de morrer sufocado. Com seu
quintal-escola, Aline usou seu estetoscópio para tirar crianças do
cativeiro da educação deficitária
e, melhor do que o presidente e
até mesmo do que o ministro, deu
uma aula prática para o Brasil.
E-mail - gdimen@uol.com.br
Texto Anterior: Rio: Banhistas matam tubarão de 300 kg e 2,40 metros Índice
|