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A VIRGEM DE FERRAZ
Católicos acreditam que suposta imagem de Nossa Senhora é prova de equívoco dos evangélicos
"Santa da janela" acirra rivalidade religiosa
ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL
Os contornos da santa -ou de
algo que lembra Nossa Senhora- continuam lá, na pequena
janela da casa igualmente modesta. Mas agora há quem vislumbre
novo desenho logo abaixo da Virgem. Um semblante sereno, que
estaria se insinuando num outro
vidro daquela mesma janela em
Ferraz de Vasconcelos (SP). A face de um homem com barba e
longos cabelos. O rosto de Cristo.
Não são poucos os que o vêem
-ainda que ali não exista nada,
apenas um vidro transparente,
sem manchas ou riscos. Também
não são poucos os que defendem:
o surgimento da santa (e a sutil
aparição de Jesus) prova que os
católicos trilham o caminho certo
e que os dogmas dos evangélicos
não passam de um equívoco.
O inquietante fenômeno místico -responsável pela súbita notoriedade da rua Antonio Bernardino Correia- aguça, portanto,
as rixas entre os dois principais
grupos religiosos do país. A discórdia se dá porque, diferentemente dos católicos, os evangélicos não cultuam Maria nem reverenciam imagens.
Na última quinta-feira, o vendedor alagoano Valdemir Vicente
de Paula, 57, resumiu assim a rivalidade: "Padre Cícero anunciou, há muito tempo, que uma
gente estranha iria tocar nossas
campainhas para tentar nos convencer a mudar de religião. Sou
católico e cansei de atender crentes em minha porta. Eles insistem:
"Abandone a idolatria". Falam que
santo nenhum tem poder. Se não
tem, como explicam o que está
acontecendo aqui? A Mãe Senhora apareceu na janela justamente
para nos avisar que não devemos
negar nossa fé".
Morador de Poá (SP), Valdemir
já visitou a "Virgem de Ferraz"
seis vezes. Nas mais recentes, enxergou o rosto de Cristo. "Vi, sim,
com uma clareza danada. Você
não vê?" O vendedor acredita que,
surgindo sob os traços da santa,
Jesus age como uma espécie de
avalista e reitera os recados que "a
Imaculada" pretende disseminar.
Idéias semelhantes povoam a
cabeça de Maria Helena Monteiro, 54. Pernambucana, a auxiliar
de limpeza contou que, na tarde
de quinta-feira, saiu do trabalho,
pegou três ônibus e se dirigiu "à
rua do milagre".
Encontrou uma multidão em fila, a peregrinar pela garagem da
casa térrea de número 330. A
Guarda Municipal de Ferraz de
Vasconcelos organizava os fiéis.
Cantando, rezando ou simplesmente em silêncio, os devotos se
aproximavam da janela -a única
que dá para a garagem-, observavam a silhueta da santa no vidro e partiam. Vários deixavam
flores ou bilhetes com pedidos.
Outros se benziam.
O ritual se repete sem parar há
duas semanas, das 8h às 20h
-período que os donos da casa
franquearam à romaria. A guarda
estima que pelo menos 163 mil
pessoas passaram por lá. O número fica ainda mais eloquente
quando se considera que a cidade
tem 142 mil habitantes.
"Desci do terceiro ônibus imaginando que avistaria apenas
Nossa Senhora", prosseguiu a auxiliar de limpeza. "Só que, de repente, notei o rosto de Cristo também e uma coroa de espinhos sobre a cabeça dele. É um sinal de
Deus. Um alerta do céu. No meu
serviço, conheço uma porção de
crentes. Todos pregam que não se
deve guardar imagem de santo e
que o demônio se esconde atrás
das estátuas sagradas. Pois, agora,
Maria veio dizer que os evangélicos estão errados."
"Errados!", reforçava o ajudante geral Lázaro Roza, 65. Bêbado,
perambulava pela rua, gritando:
"A Igreja Universal é grana. A
santa da janela é fé".
"Juro que tentei enxergar Jesus.
Fui até a casa um monte de vezes,
me apliquei à beça e não consegui.
Vi somente a Virgem", lamentava
o estudante Diego Lira José, 14.
"Provavelmente, minha crença
não é tão elevada assim... Uma pena... Você sabe, não sabe? A crença faz a gente ver."
Pode, ainda, fazer fiéis gastarem
dinheiro. Cinquenta e seis pontos
de comércio informal se instalaram na rua desde que a notícia da
aparição tomou vulto. Vendem
de tudo: cigarro, pipoca, cocada,
churrasquinho, bolo, cerveja, tapioca. Mas vendem principalmente a imagem da santa, reproduzida em camisetas, bonés e
porta-retratos. Os preços variam
de R$ 5 a R$ 10.
Conflito de interesses
A discordância entre católicos e
evangélicos beirou a pancadaria
no dia 21. Quem relata é o inspetor Ricardo Coutinho, da Guarda
Municipal:
"O povo rezava junto à janela
quando duas pessoas começaram
a distribuir uma revistinha. Na capa, havia uma pergunta: "Nossa
Senhora está viva ou morta?". Os
devotos da Virgem se irritaram, e
o clima esquentou. Se não agíssemos rápido... Pedimos às duas
pessoas que se retirassem para
evitar o conflito de interesses."
Na "rua do milagre", moram
quatro famílias evangélicas. São
minoria absoluta. "Ficamos em
maus lençóis", confidencia uma
jovem de 24 anos, adepta da Assembléia de Deus, que prefere não
se identificar. "Barulho, sujeira,
bagunça na nossa porta e o risco
de ouvir um "cala a boca" se a gente opina sobre o episódio. Não
acredito em santa nenhuma, mas
respeito os que crêem. E queria o
mesmo: que me respeitassem."
A Assembléia de Deus é também a igreja frequentada por parentes de Ana Maria de Jesus Rosa, 32, e Antônio José da Rosa, 38,
os proprietários do imóvel em
que a imagem se fixou. O casal e a
maior parte do numeroso "clã",
originários da Bahia, orgulham-se de cultivar o catolicismo. Antônio -que trabalha com demolição- não costuma perder missas
dominicais e participa de grupos
de oração.
Há, no entanto, dissidentes. Por
exemplo, o primo Vilton de Oliveira, 35, diácono da Assembléia
de Deus. "A Bíblia não deixa dúvida: aqueles contornos da janela
são apenas um desenho."
Embora divergentes, os dois ramos prezam pelas relações harmoniosas. "Fazemos questão de
nos dar bem", afirma Ana Maria.
Atitude que dom Paulo Mascarenhas Roxo, 74 -bispo da diocese de Mogi das Cruzes- aplaude. "Nada justifica ofensas e pressões entre evangélicos e católicos." Como engloba Ferraz de
Vasconcelos, a diocese criou uma
comissão de cientistas e teólogos
para investigar o fenômeno.
"Precisamos aguardar os resultados da análise", pondera dom
Paulo -sem, contudo, evitar
conjecturas. "Se os estudiosos demonstrarem que a aparição é autêntica, aí, sim: estará confirmada
a legitimidade da reverência que a
Igreja Católica sempre dedicou à
mãe de Cristo."
Emprego
Alheios aos debates da comissão, os devotos que se aglomeram
diante da janela não hesitam em
atribuir prodígios à santa. "Ela arranja emprego para quem lhe solicita com fervor", garante o burburinho que já corre pela rua.
"Espie só o caso do meu irmão
Wilson", testemunha a paranaense Jane Aparecida Giroto da Costa, 45. "O pobre não conseguia
trabalho permanente desde 98.
Domingo passado, acompanhando o programa do Gugu, soube da
Virgem. Uma coisa lhe tocou fundo o coração -e o Wilson pediu.
Quase implorou. Terça-feira, à 1h,
um conhecido bateu na casa dele.
Convidou Wilson para virar instalador de interfones. Salário de
R$ 1.000. É ou não milagre?"
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