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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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SAÚDE MENTAL

Intervenções que destroem partes do cérebro não têm aval prévio de conselhos de medicina, o que fere resolução

Cirurgia psiquiátrica é feita sem controle

Tuca Veiria/ Folha Imagem
Morador de Gôiania, que foi submetido recentemente a uma cirurgia psiquiátrica; familia diz que médico cortaria "linhas de agressividade"


RUBENS VALENTE
ENVIADO ESPECIAL A GOIÂNIA

PEDRO DIAS LEITE
ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA

Trinta anos após a lobotomia cair em desuso, outras técnicas cirúrgicas invasivas, que também provocam destruição irreversível de partes do cérebro, são feitas no Brasil sem acompanhamento exigido em resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina).
Dois médicos de Goiânia declararam ter atendido, ao todo, cerca de 330 doentes mentais -incluindo crianças e alguns com mais de uma cirurgia.
No Rio de Janeiro, outro médico afirmou operar "três ou quatro" pacientes por mês.
As cirurgias não têm o acompanhamento dos conselhos regionais de medicina, o que fere a resolução do CFM 1.408/94, que tem força de lei para os médicos e determina que um grupo externo, indicado pelo CRM, faça uma avaliação antes do procedimento.
A lobotomia -cirurgia que destrói parte da região frontal do cérebro, com o objetivo de alterar comportamentos- viveu seu apogeu na década de 40, quando teve a aplicação massificada em diversos países. Alvo de intensas críticas de psiquiatras e psicólogos, que sempre duvidaram da sua eficácia, acabou esquecida e finalmente banida em vários países na década de 70.
Outras cirurgias têm sido prescritas hoje para o tratamento de transtorno obsessivo-compulsivo, depressão e o que os médicos denominam genericamente de "agressividade".

Pelo SUS
Numa primeira entrevista, dois médicos de São Paulo afirmaram realizar cirurgias do gênero. Num segundo contato, contudo, deram novas declarações, alegando que operavam pacientes com epilepsia, mal de Parkinson ou dores "associadas" a algum transtorno mental.
Informado pela reportagem de que ocorrem operações psiquiátricas em seu Estado, o presidente do CRM de Goiás, Erso Guimarães, 51, disse que iria, na semana passada, determinar uma fiscalização nas clínicas do Estado.
"Todas as psicocirurgias precisam ter esse acompanhamento [do CRM]. Eu não tenho, pelo menos não chegou em grau de presidência, nenhuma solicitação de avaliação para realização de psicocirurgia", disse Guimarães.
O CRM do Rio enviou e-mail à reportagem afirmando que nunca foi consultado sobre cirurgias dessa natureza -resposta semelhante à dos CRMs de 11 dos Estados consultados.
Segundo médicos ouvidos pela Folha, as cirurgias psiquiátricas são pagas pelo SUS sob os mesmos códigos aplicados às cirurgias feitas para tratar doenças que não configuram transtorno mental, como epilepsia ou mal de Parkinson: "cingulotomia" ou "destruição de estrutura cerebral profunda". O método também é o mesmo, a estereotaxia.
No sistema público, uma cirurgia psiquiátrica é avaliada em R$ 6 mil. Nas clínicas particulares, oscila de R$ 10 mil a R$ 18 mil.

"Agressividade"
A estereotaxia consiste em prender, com parafusos, um halo metálico na cabeça do paciente e introduzir uma broca de aproximadamente dois milímetros de diâmetro para a perfuração do crânio. O médico então introduz um estilete com uma ponta incandescente. Numa temperatura máxima de 80 graus centígrados, o metal destrói a parte do cérebro escolhida pelo médico.
Em Goiânia, o neurocirurgião Osvaldo Vilela Filho, 40, professor universitário e sócio-proprietário de um dos principais centros especializados da região Centro-Oeste, o Instituto Neurológico de Goiânia, disse ter realizado aproximadamente 30 cirurgias do gênero desde o ano 2000 e cerca de 40 desde meados da década de 90.
Seu colega Luiz Fernando Martins, 50, citado como referência nacional no assunto por neurocirurgiões do Rio e de São Paulo e ex-integrante da direção da Sociedade Brasileira de Neurologia, contou ter realizado 432 cirurgias do gênero em 289 pacientes desde 1975 (alguns foram submetidos a mais de um procedimento). A maioria delas foi, segundo Martins, para tratar de casos de "agressividade".
As cirurgias em Goiânia vêm sendo indicadas por psiquiatras que mantêm vínculos profissionais e acadêmicos com os neurocirurgiões. É o caso do psiquiatra Salomão Rodrigues Filho, 57, que afirmou ter indicado "cerca de 15" psicocirurgias em sua carreira. Ele assina, com o médico Vilela Filho, um artigo científico publicado na revista do congresso mundial de neurocirurgia funcional realizado em 2001 na Austrália. Rodrigues Filho também integra a Câmara Técnica de Psiquiatria do Conselho Regional de Medicina goiano.
O know-how goiano está sendo exportado a psiquiatras de outros países. Segundo Vilela Filho, a Índia quer fazer cinco psicocirurgias nos próximos dias sob orientação da equipe de Goiás. De acordo com o médico, o país não faz cirurgias do gênero há anos.
Em caso único no país, o Ministério Público do Paraná interveio e evitou, no final do ano passado, em Curitiba, uma cirurgia psiquiátrica prestes a ocorrer numa paciente de 23 anos de idade.
No Rio de Janeiro, cirurgias ocorrem no Hospital Pró-Cardíaco, em Botafogo, sob comando do cirurgião José Augusto Nasser, 40, professor de Neurologia na Faculdade Estácio de Sá (RJ), que afirmou realizar cerca de "três ou quatro" procedimentos do gênero ao mês. Indagado se ele e sua equipe estavam solicitando ao CRM do Rio uma comissão externa para avaliar caso a caso, Nasser disse acreditar que isso não é necessário.
"A gente já tem a jurisprudência sobre isso. Não tem sentido ter jurisprudência para procedimento médico, você ficar consultando toda vez que vai operar paciente. Porque a gente só recebe paciente de centros de referência. Isso é igual à cirurgia de epilepsia, entendeu?" Sobre o que vem a ser a "jurisprudência", Nasser mencionou "diversos artigos científicos" publicados sobre o assunto.

Sindicância
Escalado para falar pelo Conselho Federal de Medicina, o psiquiatra Luís Salvador de Miranda Sá Júnior, 65, diretor da entidade, afirmou que não tem notícia de que a resolução não seja cumprida. "Para nós, a norma está vigendo e funcionando."
Sá Júnior reconheceu que a regra "talvez precise ser aperfeiçoada" e disse que deverá instaurar uma sindicância para apurar o que está ocorrendo.
Ressalvando tratar-se de uma opinião pessoal, o psiquiatra citou a cláusula constitucional que limita os juros no país a 12% ao ano para afirmar que, no Brasil, muitas leis não são mesmo cumpridas. "Neste país, tudo é possível."

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