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SAÚDE MENTAL
Intervenções que destroem partes do cérebro não têm aval prévio de conselhos de medicina, o que fere resolução
Cirurgia psiquiátrica é feita sem controle
Tuca Veiria/ Folha Imagem
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Morador de Gôiania, que foi submetido recentemente a uma cirurgia psiquiátrica; familia diz que médico cortaria "linhas de agressividade" |
RUBENS VALENTE
ENVIADO ESPECIAL A GOIÂNIA
PEDRO DIAS LEITE
ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA
Trinta anos após a lobotomia cair em desuso, outras técnicas cirúrgicas invasivas, que também
provocam destruição irreversível de partes do cérebro, são feitas no Brasil sem acompanhamento exigido em resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina).
Dois médicos de Goiânia declararam ter atendido, ao todo, cerca
de 330 doentes mentais -incluindo crianças e alguns com
mais de uma cirurgia.
No Rio de Janeiro, outro médico afirmou operar "três ou quatro" pacientes por mês.
As cirurgias não têm o acompanhamento dos conselhos regionais de medicina, o que fere a resolução do CFM 1.408/94, que
tem força de lei para os médicos e
determina que um grupo externo,
indicado pelo CRM, faça uma
avaliação antes do procedimento.
A lobotomia -cirurgia que
destrói parte da região frontal do
cérebro, com o objetivo de alterar
comportamentos- viveu seu
apogeu na década de 40, quando
teve a aplicação massificada em
diversos países. Alvo de intensas
críticas de psiquiatras e psicólogos, que sempre duvidaram da
sua eficácia, acabou esquecida e
finalmente banida em vários países na década de 70.
Outras cirurgias têm sido prescritas hoje para o tratamento de
transtorno obsessivo-compulsivo, depressão e o que os médicos
denominam genericamente de
"agressividade".
Pelo SUS
Numa primeira entrevista, dois
médicos de São Paulo afirmaram
realizar cirurgias do gênero. Num
segundo contato, contudo, deram
novas declarações, alegando que
operavam pacientes com epilepsia, mal de Parkinson ou dores
"associadas" a algum transtorno
mental.
Informado pela reportagem de
que ocorrem operações psiquiátricas em seu Estado, o presidente
do CRM de Goiás, Erso Guimarães, 51, disse que iria, na semana
passada, determinar uma fiscalização nas clínicas do Estado.
"Todas as psicocirurgias precisam ter esse acompanhamento
[do CRM]. Eu não tenho, pelo
menos não chegou em grau de
presidência, nenhuma solicitação
de avaliação para realização de
psicocirurgia", disse Guimarães.
O CRM do Rio enviou e-mail à
reportagem afirmando que nunca
foi consultado sobre cirurgias
dessa natureza -resposta semelhante à dos CRMs de 11 dos Estados consultados.
Segundo médicos ouvidos pela
Folha, as cirurgias psiquiátricas
são pagas pelo SUS sob os mesmos códigos aplicados às cirurgias feitas para tratar doenças que
não configuram transtorno mental, como epilepsia ou mal de Parkinson: "cingulotomia" ou "destruição de estrutura cerebral profunda". O método também é o
mesmo, a estereotaxia.
No sistema público, uma cirurgia psiquiátrica é avaliada em R$ 6
mil. Nas clínicas particulares, oscila de R$ 10 mil a R$ 18 mil.
"Agressividade"
A estereotaxia consiste em
prender, com parafusos, um halo
metálico na cabeça do paciente e
introduzir uma broca de aproximadamente dois milímetros de
diâmetro para a perfuração do
crânio. O médico então introduz
um estilete com uma ponta incandescente. Numa temperatura máxima de 80 graus centígrados, o
metal destrói a parte do cérebro
escolhida pelo médico.
Em Goiânia, o neurocirurgião
Osvaldo Vilela Filho, 40, professor
universitário e sócio-proprietário
de um dos principais centros especializados da região Centro-Oeste, o Instituto Neurológico de
Goiânia, disse ter realizado aproximadamente 30 cirurgias do gênero desde o ano 2000 e cerca de
40 desde meados da década de 90.
Seu colega Luiz Fernando Martins, 50, citado como referência
nacional no assunto por neurocirurgiões do Rio e de São Paulo e
ex-integrante da direção da Sociedade Brasileira de Neurologia,
contou ter realizado 432 cirurgias
do gênero em 289 pacientes desde
1975 (alguns foram submetidos a
mais de um procedimento). A
maioria delas foi, segundo Martins, para tratar de casos de
"agressividade".
As cirurgias em Goiânia vêm
sendo indicadas por psiquiatras
que mantêm vínculos profissionais e acadêmicos com os neurocirurgiões. É o caso do psiquiatra
Salomão Rodrigues Filho, 57, que
afirmou ter indicado "cerca de 15"
psicocirurgias em sua carreira. Ele
assina, com o médico Vilela Filho,
um artigo científico publicado na
revista do congresso mundial de
neurocirurgia funcional realizado
em 2001 na Austrália. Rodrigues
Filho também integra a Câmara
Técnica de Psiquiatria do Conselho Regional de Medicina goiano.
O know-how goiano está sendo
exportado a psiquiatras de outros
países. Segundo Vilela Filho, a Índia quer fazer cinco psicocirurgias nos próximos dias sob orientação da equipe de Goiás. De
acordo com o médico, o país não
faz cirurgias do gênero há anos.
Em caso único no país, o Ministério Público do Paraná interveio
e evitou, no final do ano passado,
em Curitiba, uma cirurgia psiquiátrica prestes a ocorrer numa
paciente de 23 anos de idade.
No Rio de Janeiro, cirurgias
ocorrem no Hospital Pró-Cardíaco, em Botafogo, sob comando do
cirurgião José Augusto Nasser, 40,
professor de Neurologia na Faculdade Estácio de Sá (RJ), que afirmou realizar cerca de "três ou
quatro" procedimentos do gênero ao mês. Indagado se ele e sua
equipe estavam solicitando ao
CRM do Rio uma comissão externa para avaliar caso a caso, Nasser
disse acreditar que isso não é necessário.
"A gente já tem a jurisprudência
sobre isso. Não tem sentido ter jurisprudência para procedimento
médico, você ficar consultando
toda vez que vai operar paciente.
Porque a gente só recebe paciente
de centros de referência. Isso é
igual à cirurgia de epilepsia, entendeu?" Sobre o que vem a ser a
"jurisprudência", Nasser mencionou "diversos artigos científicos"
publicados sobre o assunto.
Sindicância
Escalado para falar pelo Conselho Federal de Medicina, o psiquiatra Luís Salvador de Miranda
Sá Júnior, 65, diretor da entidade,
afirmou que não tem notícia de
que a resolução não seja cumprida. "Para nós, a norma está vigendo e funcionando."
Sá Júnior reconheceu que a regra "talvez precise ser aperfeiçoada" e disse que deverá instaurar
uma sindicância para apurar o
que está ocorrendo.
Ressalvando tratar-se de uma
opinião pessoal, o psiquiatra citou
a cláusula constitucional que limita os juros no país a 12% ao ano
para afirmar que, no Brasil, muitas leis não são mesmo cumpridas. "Neste país, tudo é possível."
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