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ENSINO PÚBLICO
Estudo revela que só a rua Bela Cintra tem mais ingressantes do que 74 bairros periféricos da zona sul da cidade
Bairros da elite de SP dominam vagas da USP
LAURA CAPRIGLIONE
FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL
Tudo começou com um erro.
Aos 17 anos, Dário Ferreira Neto,
saiu de Guaianases, no extremo
leste de São Paulo, e foi procurar o
posto do Exército em Osasco (zona oeste). Ia se alistar. Desacostumado com a geografia da região, o
rapaz desceu do trem na estação
errada. Quando se deu conta, estava no campus da Universidade
de São Paulo. "Fiquei deslumbrado. Não tinha idéia do que era a
USP", conta. "Saí de lá com uma
idéia fixa: Vou estudar aqui."
Ferreira, que abandonara a escola aos 16 anos, antes de concluir
o ensino médio, retomou os estudos. Aturou as gozações de seus
próprios professores, que achavam absurdo o sonho de entrar na
USP. Fez um ano de cursinho popular. Por fim, passou no vestibular do curso de letras.
Bem diferente é a trajetória de
Luana Kawamura Demange, 23.
Filha de professores universitários, Luana sempre soube que um
dia estaria em uma faculdade pública. "Nem prestei vestibular nas
particulares", conta. Entrou em
arquitetura na Unicamp e na USP
- a instituição eleita por ela.
Ele é de Guaianases, um dos
bairros mais pobres e violentos da
zona leste. Ela é dos Jardins, o
miolo da elite econômica e cultural paulistana.
Ele vem de uma família com
renda inferior a um salário mínimo por pessoa, estudou a vida toda em escolas públicas e só saiu de
São Paulo pela primeira vez aos 19
anos. Ela tem família com renda
superior a 20 salários mínimos,
morou no Japão aos 13 anos e fala
inglês, espanhol e francês.
Para se ter uma idéia do precipício que separa os locais de origem
de Ferreira e de Luana, segundo o
Mapa da Juventude (estudo da
Prefeitura de São Paulo sobre o
perfil dos jovens da cidade), na região que inclui Guaianases, 43%
dos jovens estão fora das escolas.
Na região onde estão os Jardins,
63,4% dos jovens estão matriculados em escolas particulares.
Em comum, os dois agora têm a
instituição em que estudam: a
USP. Só que, enquanto a presença
de Luana na universidade é a regra, a de Dário é a exceção. É isso
o que mostra um estudo concluído na semana passada pelo Núcleo de Apoio a Estudos da Graduação, o Naeg, órgão da USP.
Pelo trabalho do Naeg, mapearam-se os endereços dos ingressantes na USP entre 1995 e 2004.
Já se imaginava uma concentração de estudantes oriundos dos
bairros mais ricos, mas o resultado surpreendeu pelo excesso.
Apenas uma rua, a Bela Cintra,
na região dos Jardins, conseguiu,
no vestibular de 2004, emplacar
mais moradores nos bancos uspianos do que a soma de 74 bairros periféricos da zona sul.
A Bela Cintra, porém, é apenas o
caso mais vistoso de um quadro
de hiperconcentração da oportunidade de acesso ao ensino superior público nas mãos de uma pequena parcela da população.
Muito para poucos
Quando se mapeiam as moradias dos ingressantes da USP ao
longo dos últimos dez anos, percebe-se que uma mancha de bairros em volta do centro da cidade,
contendo apenas 19,5% da população total de São Paulo, açambarca 70,3% do total de vagas.
O lado "B" dessa história é evidente: aos bairros periféricos, que
compreendem 80,5% da população da cidade, cabem 29,7% das
vagas da universidade.
Basta um simples exercício matemático, baseado nos dados do
estudo do Naeg, para concluir que
um candidato ao vestibular da
USP que viva no centro da cidade
e seus arredores tem até nove vezes mais chances de conseguir a
sua vaga do que aqueles oriundos
do entorno dessa área.
Acontece que essa desigualdade
retratada no estudo não foi criada
pela USP, nem existe apenas em
relação à universidade.
Dados de renda e de qualidade
de vida reproduzem o mesmo resultado sociodemográfico.
Aplicado a São Paulo, o IDH
(Índice de Desenvolvimento Humano), criado pela ONU (Organização das Nações Unidas) para
medir o desenvolvimento local
com base na expectativa de vida,
no nível educacional e na renda
per capita, classificou as regiões
da capital de acordo com sua semelhança em relação a índices de
países ou continentes.
Bairros como Pinheiros, Jardim
Paulista, Moema, Itaim Bibi e Morumbi ganharam a classificação
de "região européia", por reproduzirem índices de desenvolvimento de Primeiro Mundo. No
outro extremo, as periferias leste e
sul, especialmente, receberam o
título de "regiões africanas" pela
similaridade com o continente
mais subdesenvolvido do mundo.
"O modelo de desenvolvimento
da atual política urbana exclui os
pobres das regiões centrais e os
empurra para as periferias da cidade, reduzindo seu acesso às
oportunidades", diz Raquel Rolnik, secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério
das Cidades. "É o que eu chamo
de exclusão territorial, que não é
exatamente a exclusão social, mas
que a acentua e obstrui o processo
de ascensão social. E uma das formas de ascensão é o estudo, particularmente na universidade."
Para Rolnik, os dados da pesquisa do Naeg demonstram que
"a riqueza e as oportunidades circulam nas mãos de quem já as
têm". "E a exclusão territorial
acentua isso porque cria guetos."
O estudo da USP é resultado do
esforço do Núcleo de Apoio a Estudos da Graduação (Naeg), coordenado pelo professor Adilson Simonis, do Instituto de Matemática e Estatística. Resultou da engenhosidade e do esforço obsessivo
do professor de dotar a USP de estatísticas que permitam entender
o lugar da universidade na cidade
de São Paulo e no país.
O próximo desafio é saber o que
será dos alunos que se formarem.
O site do Naeg (naeg.prg.usp.br)
está cadastrando ex-alunos da
USP. Um dos objetivos é saber se
a universidade é capaz de encurtar a distância social que separa
Ferreira de Luana. Nem isso ainda
dá para saber.
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