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ARTIGO
Só gasto público permite retomada
RICARDO CARNEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A incapacidade da política
econômica de estimular o
crescimento é, cada vez mais, indisfarçável. A despeito disso, as
propostas de mudança têm sido
sistematicamente desqualificadas. Fora do modelo ortodoxo,
nada parece possível ou viável. A
essa perspectiva é necessário contrapor outra que advoga não só a
premência mas a viabilidade da
mudança da política econômica.
Numa ótica de curto prazo, as
modificações se dariam na sua flexibilização, enfatizando seu caráter anticíclico.
Sob o efeito das políticas ora em
curso, o desempenho da economia brasileira tem sido pífio. Mesmo a tão louvada estabilidade de
preços, ao assentar-se num primeiro momento na sobreutilização da âncora cambial e num segundo numa precária política de
metas de inflação, terminou por
produzir a instabilidade macroeconômica ao ampliar a dívida pública interna e impulsionar um
novo ciclo de endividamento externo, em parte por meio da atração de capitais de curto prazo.
Na atualidade, a despeito do cenário internacional favorável, a
economia encontra-se deprimida. A recuperação dos investimentos com base nos setores exportadores e na ampliação episódica do consumo de bens duráveis não é suficiente para assegurar o crescimento. Setores de
grande peso, como os que produzem para as camadas de baixa e
média renda, ou segmentos intensivos em construção civil, com
grande dependência do gasto público, têm regredido.
Poder de compra
O baixo crescimento do nível de
ocupação, a contração no rendimento real e a mudança de preços
relativos a favor dos serviços de
utilidade pública diminuíram o
poder de compra das famílias e
reduziram sua capacidade de endividamento. A parcela do consumo que depende do crédito tem
seu aumento impedido também
pelos elevados juros e pela insegurança do emprego. Prova disso é o
relativo fracasso da política de
crédito "favorecido" posta em
prática pelo governo, cuja demanda ficou muito abaixo das
disponibilidades.
Nesse quadro, dificilmente pode-se presumir uma ampliação
do gasto privado em consumo e
investimento capaz de fazer a renda voltar a crescer. Dada a política
fiscal restritiva, a única fonte de
dinamismo da economia tem sido as exportações líquidas. Mas
elas não têm sido capazes de impulsionar o crescimento, porque
a economia brasileira é relativamente fechada e o saldo comercial
representou só 3,5% da demanda
nominal em 2003.
Nesse ambiente, a retomada só
ocorrerá por meio de uma ação
anticíclica, tanto por meio do gasto direto do governo quanto pelo
fomento à atividade privada
-incluindo preços macroeconômicos mais favoráveis, o que supõe a estabilização do câmbio e a
redução continuada dos juros.
O cenário internacional favorável dos últimos meses não deve
obscurecer as dificuldades de sua
sustentação. É previsível sua inversão, que implique tanto uma
redução da liquidez quanto uma
queda de preços das commodities. Há dois fatores essenciais de
preservação do quadro externo: a
trajetória dos juros dos EUA e o
crescimento da China, ambos insustentáveis a médio prazo.
A inversão do ciclo de liquidez,
ancorada numa ampliação da
aversão ao risco, deve ocorrer antes mesmo da elevação dos juros
nos EUA. A expectativa de elevação das taxas do Fed determinou
o desmonte das operações especulativas e já atinge os ativos financeiros de maior risco. Como
os títulos brasileiros pertencem
ao segmento de alto risco, tudo
indica que o financiamento externo para a economia brasileira, caracterizado por maior volatilidade, deverá se retrair mais rápido e
com mais intensidade.
O aumento de preços das commodities, que contribui para o
crescimento das exportações, reflete a sincronização da recuperação global, o peso do crescimento
da China no comércio global e o
baixo custo de carregamento dos
estoques. É improvável que a taxa
de crescimento da China se mantenha no ritmo atual, dados os
gargalos na infra-estrutura. Por
sua vez, a alta dos juros vai desinflar o valor das commodities ao
reduzir o componente especulativo da elevação de preços.
É necessário estar preparado
para essas mudanças, evitando
novas apreciações da moeda nacional e ampliando significativamente as reservas internacionais.
Nesse particular, a condução da
política macroeconômica foi bastante equivocada. Em 2003, ante
um significativo afluxo de capitais
e inversão da conta de transações
correntes, os juros ficaram em patamar elevado por um tempo
muito longo. Houve uma desaceleração mais rápida da inflação,
mas se permitiu a valorização do
real e se desperdiçou a oportunidade de uma acumulação mais
substantiva de reservas.
Regime inflexível
O regime de metas de inflação,
de difícil execução numa economia sujeita a choques de oferta,
tem sido operado de forma inflexível. A política antiinflacionária
tem se convertido numa política
anticrescimento. Um exemplo é o
ano de 2004. É indiscutível que os
deslocamentos da inflação foram
comandados por choques de
oferta, em particular o de commodities. Ou seja, houve um processo de mudança de preços relativos com impactos no nível geral
de preços. A tentativa de impedir
ou amenizar essa mudança, mediante a sustentação do juro em
nível elevado, resultou em sacrifícios do produto e do emprego.
O deslocamento da meta do
centro para o teto seria suficiente
para acomodar as mudanças assinaladas acima, sem comprometer
a âncora nominal e a eficácia do
regime. No quadro atual da economia de baixo crescimento do
emprego e desindexação dos salários, é improvável uma aceleração
da inflação. Por sua vez, é imprescindível eliminar duas fontes essenciais de pressão sobre os preços: a volatilidade cambial e a indexação dos preços administrados por uma variável da taxa de
câmbio. Isso reduziria substancialmente os impactos dos choques de oferta sobre a inflação, liberando a taxa de juros.
Endividamento
Outro aspecto da mudança de
curto prazo diz respeito ao gasto
público. O objetivo central é ampliar a capacidade de investimento e conseqüentemente de endividamento do segmento empresarial na área de infra-estrutura econômica e social. Para tanto, é necessário retirar esse segmento do
cômputo do superávit primário.
Essa medida encontra justificativa no retorno propiciado pelos investimentos. Ou seja, no caso do
gasto empresarial, a formação de
novos ativos gera fluxo de caixa
que assegura a futura amortização da dívida.
A alegação de que essa medida
implicaria uma elevação da relação dívida/PIB ao reduzir o superávit primário não procede. A dívida do setor público tem a sua dinâmica determinada por variáveis patrimoniais (taxa de câmbio
e esqueletos), financeiras (juros) e
correntes (crescimento do PIB e
superávit primário). A combinação de estabilidade cambial com
redução dos juros reais, associados à retomada do crescimento,
implicaria uma trajetória de declínio da relação dívida/PIB, apesar
da redução do saldo primário.
Outra medida de importância
seria o fortalecimento da função
de fomento do sistema financeiro
público por meio da ampliação
do volume e redução do custo do
crédito. Essa reorientação envolve
medidas específicas, mas principalmente a decisão política de enfatizar o caráter público dessas
instituições ao retirar-lhes o caráter privado, tanto operacional
quanto no que diz respeito às exigências de rentabilidade. Nesse
campo outras medidas serão necessárias, como a eliminação da
transferência ao Tesouro de parte
dos lucros dessas instituições financeiras com o propósito de
compor o superávit primário,
prática que tem reduzido a ampliação dos seus patrimônios líquidos e conseqüentemente a capacidade de empréstimo.
Das possíveis objeções a esse
conjunto de políticas, uma merece consideração particular: o seu
timing. É possível que a inversão
do ciclo internacional acelere nos
próximos meses, tornando obsoleta a discussão dessas medidas e
deslocando o debate das opções
para outro plano mais dramático.
Ricardo Carneiro é professor do Instituto de Economia e Diretor do Centro de
Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp.
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