São Paulo, domingo, 04 de julho de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Política, economia e capitalismo

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

A política econômica americana no pós-guerra -e mais intensamente desde a era Reagan- esmerou-se em contradizer frontalmente a gororoba ideológica em que se transformou a teoria econômica ensinada em suas universidades. As recentes investidas neoliberais conseguiram desfigurar algumas das dimensões do Estado do Bem-Estar, a dano dos subalternos. Mas deveria ser óbvio que a parolagem dos mercados livres, se foi impotente para reverter as transformações econômicas e sociais iniciadas nos anos 30, conseguiu, sem dúvida, colocar a seu serviço as conquistas da revolução keynesiana.
Como Keynes, Greenspan parece acreditar que a administração do capitalismo deve "ser buscada, em parte, pelo controle da moeda e do crédito por uma instituição central e, em parte, por um acompanhamento da situação dos negócios, subsidiados por abundante produção de dados e informações".
O crescimento americano dos anos 90 foi promovido por elevados déficits do setor privado, amparado na rápida expansão do crédito e na forte capitalização das Bolsas. Isso permitiu que a reconhecida capacidade de inovação da economia se materializasse na rápida acumulação de nova capacidade produtiva. Ao mesmo tempo, o consumo das famílias disparava, a poupança pessoal batia recordes negativos e o déficit em transações correntes do balanço de pagamentos chegava a 4,5% do PIB (Produto Interno Bruto).
A conjugação entre valorização do dólar, déficit em conta corrente -com importações baratas e forte imigração de mão-de-obra da periferia- foi decisiva para que o ciclo atingisse o auge sem que o aquecimento nos mercados de trabalho e de bens suscitasse pressões inflacionárias.
O dispêndio privado correu sempre à frente da renda corrente. Essa diferença chegou a 6% do PIB no último trimestre de 2000. Os elevados "déficits" do setor privado engendraram os superávits fiscais (2,5% do PIB) e o déficit em conta corrente do balanço de pagamentos (4,5% do PIB). Mas a enxurrada de financiamento externo valorizou o dólar e manteve a inflação sob controle.
A reversão do ciclo começou de forma clássica, ou seja, com a queda pronunciada dos gastos de investimento. Investimentos em queda livre, lucros minguantes, ameaça de deflação. Ao promover a rápida redução das taxas do overnight, o Fed (banco central dos EUA) deu sinais a fundos e a bancos de que iria continuar "dando liquidez" ao mercado, obviando as perdas patrimoniais. Impediu, ademais, que a estrutura a termo das taxas de juros ficasse reversa.
A política monetária funcionou de forma anticíclica: a autoridade monetária satisfez a demanda dos "market makers" por papéis mais líquidos e seguros. Essa providência manteve a rentabilidade das carteiras desses agentes ao reduzir o seu custo de carregamento. Ao mesmo tempo, o superávit fiscal tornou-se disfuncional -tanto do ponto de vista macroeconômico como da composição dos patrimônios privados. O setor privado, na recessão, demanda papéis do governo como forma de preservação da riqueza líquida, substituindo, na margem, a aquisição de papéis privados. As autoridades monetárias não podem deixar que prosperem e se aprofundem o processo de contágio e a deflação de ativos.
Depois da recuperação, Greenspan vem conseguindo regular o sistema com a promessa de aumentos gradativos da taxa de juros e tolerando a "aberração" da nova inflação de ativos nos mercados imobiliários. É verdade que, a despeito do monumental déficit em transações correntes, os Estados Unidos não precisam preocupar-se, pelo menos por enquanto, com o risco de uma fuga de dólares. A demanda pela moeda norte-americana nasce hoje do papel dos Estados Unidos como economia cêntrica e, sobretudo, da atração dos títulos públicos como ativos líquidos de última instância na economia global.
Enorme vantagem para quem tem um déficit de transações correntes da ordem de US$ 550 bilhões. Qualquer outro país que tivesse um déficit dessa magnitude teria sofrido um ataque contra sua moeda. No entanto, apesar dos augúrios, não parece provável uma derrocada do dólar. A demanda de não-residentes por títulos do governo americano, especialmente a que nasce dos saldos comerciais e das enormes reservas dos países asiáticos, vem permitindo a expansão do crédito e a sustentação do preço dos ativos no mercado financeiro americano. Enquanto isso, as famílias se endividam ainda mais para adquirir produtos baratos oriundos dos "produtivistas" da Ásia -uma demonstração prática das relações entre hegemonia monetária, expansão de crédito, valorização de ativos e crescimento econômico.
A experiência americana demonstra, assim, a efetividade das políticas anticíclicas fundadas na articulação estrutural entre o sistema de crédito, a acumulação produtiva das empresas, o consumo privado e a gestão das finanças do Estado, particularmente da dívida pública. Essa verdadeira fusão de funções e de interesses reafirma o caráter essencialmente "coletivista" (e macroeconômico) dos processos centrais de reprodução do capitalismo realmente existente. As relações entre o Estado e o mercado (uma forma imperfeita de exprimir as relações entre a política e a economia) não são "externas", de mero intervencionismo, são orgânicas e constitutivas. Nos tempos da "economia global", tais formas socializadas do poder privado permitem diversificar a riqueza de cada grupo, distribuí-la por vários mercados e assegurar o máximo de ganhos patrimoniais, se possível a curto prazo. Os agentes dessas operações são as instituições da finança privada. São elas que definem os preços de venda, os métodos de financiamento, a participação acionária dos grupos, as estratégias de valorização das ações. A garantia final -mas certamente não-definitiva- do processo de valorização de ativos é a existência de um estoque de ativos líquidos e seguros emitidos pelo governo do país hegemônico. Esse é o mercado "competitivo" do capitalismo formado por empresas gigantes na era da desregulamentação e da liberalização.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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