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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Política, economia e capitalismo
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
A política econômica americana no pós-guerra -e
mais intensamente desde a era
Reagan- esmerou-se em contradizer frontalmente a gororoba
ideológica em que se transformou
a teoria econômica ensinada em
suas universidades. As recentes investidas neoliberais conseguiram
desfigurar algumas das dimensões
do Estado do Bem-Estar, a dano
dos subalternos. Mas deveria ser
óbvio que a parolagem dos mercados livres, se foi impotente para reverter as transformações econômicas e sociais iniciadas nos anos 30,
conseguiu, sem dúvida, colocar a
seu serviço as conquistas da revolução keynesiana.
Como Keynes, Greenspan parece
acreditar que a administração do
capitalismo deve "ser buscada, em
parte, pelo controle da moeda e do
crédito por uma instituição central e, em parte, por um acompanhamento da situação dos negócios, subsidiados por abundante
produção de dados e informações".
O crescimento americano dos
anos 90 foi promovido por elevados déficits do setor privado, amparado na rápida expansão do
crédito e na forte capitalização das
Bolsas. Isso permitiu que a reconhecida capacidade de inovação
da economia se materializasse na
rápida acumulação de nova capacidade produtiva. Ao mesmo tempo, o consumo das famílias disparava, a poupança pessoal batia recordes negativos e o déficit em
transações correntes do balanço
de pagamentos chegava a 4,5% do
PIB (Produto Interno Bruto).
A conjugação entre valorização
do dólar, déficit em conta corrente
-com importações baratas e forte
imigração de mão-de-obra da periferia- foi decisiva para que o ciclo atingisse o auge sem que o
aquecimento nos mercados de trabalho e de bens suscitasse pressões
inflacionárias.
O dispêndio privado correu sempre à frente da renda corrente. Essa diferença chegou a 6% do PIB
no último trimestre de 2000. Os
elevados "déficits" do setor privado engendraram os superávits fiscais (2,5% do PIB) e o déficit em
conta corrente do balanço de pagamentos (4,5% do PIB). Mas a
enxurrada de financiamento externo valorizou o dólar e manteve
a inflação sob controle.
A reversão do ciclo começou de
forma clássica, ou seja, com a queda pronunciada dos gastos de investimento. Investimentos em
queda livre, lucros minguantes,
ameaça de deflação. Ao promover
a rápida redução das taxas do
overnight, o Fed (banco central
dos EUA) deu sinais a fundos e a
bancos de que iria continuar
"dando liquidez" ao mercado, obviando as perdas patrimoniais.
Impediu, ademais, que a estrutura
a termo das taxas de juros ficasse
reversa.
A política monetária funcionou
de forma anticíclica: a autoridade
monetária satisfez a demanda dos
"market makers" por papéis mais
líquidos e seguros. Essa providência manteve a rentabilidade das
carteiras desses agentes ao reduzir
o seu custo de carregamento. Ao
mesmo tempo, o superávit fiscal
tornou-se disfuncional -tanto do
ponto de vista macroeconômico
como da composição dos patrimônios privados. O setor privado, na
recessão, demanda papéis do governo como forma de preservação
da riqueza líquida, substituindo,
na margem, a aquisição de papéis
privados. As autoridades monetárias não podem deixar que prosperem e se aprofundem o processo de
contágio e a deflação de ativos.
Depois da recuperação, Greenspan vem conseguindo regular o
sistema com a promessa de aumentos gradativos da taxa de juros e tolerando a "aberração" da
nova inflação de ativos nos mercados imobiliários. É verdade que, a
despeito do monumental déficit
em transações correntes, os Estados Unidos não precisam preocupar-se, pelo menos por enquanto,
com o risco de uma fuga de dólares. A demanda pela moeda norte-americana nasce hoje do papel dos
Estados Unidos como economia
cêntrica e, sobretudo, da atração
dos títulos públicos como ativos líquidos de última instância na economia global.
Enorme vantagem para quem
tem um déficit de transações correntes da ordem de US$ 550 bilhões. Qualquer outro país que tivesse um déficit dessa magnitude
teria sofrido um ataque contra sua
moeda. No entanto, apesar dos
augúrios, não parece provável
uma derrocada do dólar. A demanda de não-residentes por títulos do governo americano, especialmente a que nasce dos saldos
comerciais e das enormes reservas
dos países asiáticos, vem permitindo a expansão do crédito e a sustentação do preço dos ativos no
mercado financeiro americano.
Enquanto isso, as famílias se endividam ainda mais para adquirir
produtos baratos oriundos dos
"produtivistas" da Ásia -uma
demonstração prática das relações
entre hegemonia monetária, expansão de crédito, valorização de
ativos e crescimento econômico.
A experiência americana demonstra, assim, a efetividade das
políticas anticíclicas fundadas na
articulação estrutural entre o sistema de crédito, a acumulação
produtiva das empresas, o consumo privado e a gestão das finanças do Estado, particularmente da
dívida pública. Essa verdadeira
fusão de funções e de interesses
reafirma o caráter essencialmente
"coletivista" (e macroeconômico)
dos processos centrais de reprodução do capitalismo realmente existente. As relações entre o Estado e
o mercado (uma forma imperfeita
de exprimir as relações entre a política e a economia) não são "externas", de mero intervencionismo, são orgânicas e constitutivas.
Nos tempos da "economia global",
tais formas socializadas do poder
privado permitem diversificar a riqueza de cada grupo, distribuí-la
por vários mercados e assegurar o
máximo de ganhos patrimoniais,
se possível a curto prazo. Os agentes dessas operações são as instituições da finança privada. São
elas que definem os preços de venda, os métodos de financiamento,
a participação acionária dos grupos, as estratégias de valorização
das ações. A garantia final -mas
certamente não-definitiva- do
processo de valorização de ativos é
a existência de um estoque de ativos líquidos e seguros emitidos pelo governo do país hegemônico.
Esse é o mercado "competitivo" do
capitalismo formado por empresas gigantes na era da desregulamentação e da liberalização.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor
titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos
do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia
do Estado de São Paulo (governo Quércia).
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