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LUÍS NASSIF
Abismo de rosas
Luiz Américo subiu na
cadeira e se debruçou sobre o caixão do pai morto.
Olhou detidamente, mas não
conseguiu reter a imagem na
memória. Tinha apenas dois
anos e nove meses.
A irmã de quase quatro anos
ainda conseguiu se lembrar do
pai, do caixão que saiu da rua
13 de Maio, onde moravam,
em direção ao cemitério do
Araçá. Ele, não.
Nos 75 anos seguintes perseguiu a memória do pai. Ainda
na infância demorou um pouco para entender sua relevância, sua história. Tanto que
acabou estragando o álbum de
recortes que deixou. Mas o violão ele conservou com carinho,
o mesmo violão de madeira fina, flexível, construído pelo então jovem Di Giorgio, que trabalhava para o Gianinni, e que
uns anos atrás levou até minha
casa me deixando comovido.
Luiz Américo acha que o problema que o pai teve na aorta
foi devido ao empenho com
que tocava o violão, quase o
vergando sobre o peito. Mas
soube tudo por terceiros.
A mãe Maria Rita de Moraes
foi a primeira a ajudá-lo na
composição do retrato paterno,
juntando peças para montar
sua história. Falava com carinho daquele filho de italianos
de traços fortes, jeito galante,
nascido em 1889 na rua do
Carmo, quarto dos cinco filhos
de um italiano de Nápoles, o
primeiro a nascer no Brasil.
Primeiro, o pai aprendeu o
bandolim, depois, o violão. Estreou na música com 16 anos e
passou a percorrer o Estado, tocando e fazendo sucesso. E era
tão espontâneo e cativante,
que não teve dificuldade em
conquistá-la a ela, filha de Antonio Vieira de Moraes, o Nhonhô Pereira, político de prestigio, e sobrinha de Julio Prestes.
A escola de violão carioca começou a ser construída no início do século, com base em três
nordestinos, Sátiro Bilhar
(1860-1927), Quincas Laranjeiras (1883-1935) e o João Pernambuco (1883-1947), além do
niteroiense Levino Conceição..
Em São Paulo, o violão ainda
engatinhava após temporadas
do paraguaio Agustín Barrios
que, contam as lendas, morreu
envenenado décadas depois
por uma moça da Bahia com
quem se casou e levou para
Guatemala com ele.
Barrios, a espanhola Josefina
Robledo, o cubano Gil Orosco,
o espanhol Manuel Gomes, todos foram deixando sementes
com seus recitais de violão. Autor de um minucioso trabalho
sobre o violão paulista, Gilson
Uehara Antunes localizou até
uma nota anunciando a apresentação em 20 de novembro
de 1920 do violonista Jorge Aleman Moreira e seu filho Oscar
Marcello Aleman, de nove
anos de idade, mais tarde um
dos maiores nomes do swing.
Antes de chegar ao violão, o
pai aprendeu bandolim. Depois o violão, e de ouvido. Mesmo sem ler música, criou um
método que ajudou a formar
até Tom Jobim.
Quando estreou em 17 de
abril de 1916 no Teatro Colombo, no Braz, levou pouco tempo
para ser reconhecido como "o
rei do violão". Assim como os
nordestinos do Rio, com seus
Turunas da Mauricéia, o pai se
interessou pela música caipira
e chegou a formar um trio de
enorme sucesso com Viterbo e
Abigail. A carreira foi interrompida por uma bala que
atingiu a testa de Viterbo lá em
Poços de Caldas. Uns falam
que foi bala perdida; outros
que foi por causa de mulher.
O título de "rei do violão" foi
dado em 1926, não em São
Paulo, mas no Rio de Janeiro,
em um concurso em que obteve
o prêmio principal, que levava
o nome de João Pernambuco.
A essa altura, o violão já havia conquistado os salões da cidade, e o pai tinha mais de 200
alunos, a maioria senhoritas
de boas famílias, e pelo menos
dois meninos prodígios que
ajudariam a fazer a história do
violão no país: Aníbal Augusto
Sardinha, o Canhoto, e Armandinho das Neves.
Até hoje Luiz Américo persegue a memória do pai. Mas o
tem encontrado em muitos lugares, praticamente em todos
onde existe o violão brasileiro.
Hoje completam 75 anos da
morte de Américo Jacomino, o
Canhoto. A São Paulo oficial se
esqueceu dele. Mas em todas as
rodas violonistas do país,
"Abismo de Rosas", sua música
mais conhecida, composta aos
16 anos de idade, será tocada
reverencialmente, aclamada
como uma das músicas brasileiras do século.
E-mail - luisnassif@uol.com.br
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