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ESPETÁCULO EM XEQUE
Ex-presidente do BC afirma que taxa real tem de diminuir para 3% a 5% no período de 12 a 24 meses
Eris defende inflação maior para juro cair
CLÁUDIA TREVISAN
DA REPORTAGEM LOCAL
Presidente do BC (Banco Central) em 1990 e 1991, quando o
Brasil era comandado por Fernando Collor de Mello e ainda lutava contra a hiperinflação, o economista Ibrahim Eris afirma que
o país não entrará em uma rota de
crescimento sustentado se mantiver taxas de juros reais de 8% a
10% ao ano e uma moeda sobrevalorizada em relação ao dólar.
Crítico do que considera extremo conservadorismo do BC, Eris
defende que o país conviva com
inflação mais alta que a prevista
pelo governo para os próximos
anos, se este for o preço a pagar
pela queda dos juros e a conquista
do crescimento sustentado.
O economista afirma que é impossível saber qual é a taxa de
equilíbrio dos juros reais no Brasil, mas afirma que só um nível de
3% a 5% é tolerável a longo prazo.
Eris vai mais longe e propõe a
redução, a partir de 2005, da meta
de 4,25% de superávit primário,
que é a economia feita pelo governo para pagar os juros da dívida
pública. A seguir, a entrevista
concedida à Folha:
Folha - O Brasil tem condições de
ter hoje juros reais de 6% a 8%, como deseja o ministro José Dirceu?
Ibrahim Eris - Fico muito assustado quando vejo meus colegas
-e, em certo momento, o Banco
Central também levantou a hipótese- dizendo que a taxa real de
equilíbrio no Brasil é algo em torno de 8% a 10%. Antes de mais
nada, tem de ser questionado esse
patamar. Os 6% a 8% do José Dirceu me pareceram como uma
transição a uma taxa mais civilizada de 3%, 4%, 5% ou 6%. É possível um país conviver ano após ano
com juro real de 8% a 10%? A resposta é simples: não, não e não.
Folha - Mas o Brasil convive há
anos com taxas desse nível...
Eris - E olhe onde estamos.
Quando digo que não dá para
conviver, quer dizer que essas taxas nos condenariam a níveis de
crescimento extremamente baixos, que significaria estagnação
de renda per capita, que colocaria
o setor público eternamente na situação em que está hoje.
Isso quer dizer um setor público
que gera superávits primários elevados para poder manter a dívida
pública sob controle -o que em
qualquer hipótese tem de ser feito-, mas isso implica sempre
uma carga tributária extremamente elevada, que sufoca a economia, o setor privado e resulta
em investimentos baixos.
Para nós sairmos dessa armadilha, a taxa de juros tem de ser mais
baixa. Uma taxa de juros de 9%
significa que se a economia crescesse a 3%, ano após ano, com essa taxa -e acho que não cresce-
nós estaríamos condenados a ter
um superávit primário próximo
de 3,5%. Com 3,5%, haveria espaço para reduzir a carga tributária,
o que é indispensável, e para o governo investir na infra-estrutura?
Obviamente, a resposta é não.
Que tipo de crescimento é esse?
Colocando um pequeno
"spread" bancário, nós estamos
falando de taxa de juros de 15% a
20% real na primeiríssima linha
de empresas. Quais são os projetos que rendem, ano após ano,
sem risco, de 15% a 20%? Por que
o sujeito vai investir para gerar os
tais 3% de crescimento? Isso não
vai acontecer.
Se a economia exige 8% a 10%
permanentemente, existe algo de
errado com o seu modelo, porque
ela está se inviabilizando. É viável
ter taxa de juros menores neste
país? Eu tenho obrigação de dizer
que sim. Não estou dizendo que
temos de baixar os juros reais hoje, de 9% a 10% para 3%, 4%. Mas,
se quisermos crescer, temos de
viabilizar taxas reais, no mercado
Selic, de 3%, 4%, no máximo 5%.
Folha - Em que período?
Eris - Nos próximos 12 a 24 meses. Se quisermos abrir perspectivas de crescimento para pós-2004, temos de estar nessa trajetória. Estou convencido de que o
crescimento de 2004 será um vôo
de galinha, como dizem, se alguns
ajustes macroeconômicos não forem feitos e se a agenda microeconômica não estiver já iniciada.
É viável um crescimento no ano
que vem de 3% a 3,5%, com inflação de 5,5%, que são as metas do
governo. É viável,
inclusive com juros reais de 9%. O
superávit comercial seria da ordem de US$ 19 bilhões, suficiente
para fechar as
contas externas.
Folha - O crescimento se sustenta
a partir de 2005?
Eris - Essa é a
parte crucial: em
2005 e 2006, nós
vamos continuar
assim? Olhando
para o futuro fico
preocupado com
a taxa de juros.
Nós temos um
Banco Central extremamente conservador, mais
conservador do
que o anterior. Esse Banco Central,
e os anteriores
também, trabalha
com modelos extremamente frágeis de previsão
de inflação.
Folha - Por quê?
Eris - Porque a
ciência econômica conhece pouco.
Folha - Então
qualquer modelo
seria frágil?
Eris - Seria frágil.
Mais frágil ainda
em um país como
o Brasil, que tem
um passado inflacionário extremamente complicado e uma base de
dados frágil, que
não tem séries
muito longas. Não
é crítica ao Banco
Central, é crítica a
nós todos. Nós estamos vendendo
ao público uma
idéia errada, a
idéia de que as decisões estão baseadas em modelos técnicos precisos. Isso não é verdade. Por isso que
o Banco Central
ou qualquer política econômica é um misto de
ciência e arte.
Folha - Esses modelos é que sustentam a teoria de que o piso para
o juro real no Brasil é de 8% a 10%?
Eris - Eu suponho que sim.
Quando discutimos esses assuntos econômicos, nós temos de ser
mais modestos. Nós realmente
não temos condições de saber
qual a taxa de juros real de equilíbrio. Sei que há taxas inviáveis por
períodos muito longos, taxas que
são cinzentas e outras que são
perfeitamente viáveis.
Acima de 8%, esquece. Para ser
honesto, 7% é inviável. Agora, de
3% a 6%... Como vamos descobrir? Tentativa e erro. E isso é exatamente a fonte de controvérsia,
se o Banco Central errou na dosagem ou não. Eternamente nós vamos discutir isso. Eu diria que os
fatos mostraram que o Banco
Central errou na dosagem da política monetária
em 2003.
Folha - O BC arriscará nesse exercício de tentativa e
erro ou ficará preso à idéia de que a
taxa real de equilíbrio é alta?
Eris - Não quero
ser leviano. Em
certo sentido,
2003 foi um ano
atípico, porque
começamos o ano
preocupados com
inflação, alguns
mais, outros menos. O Banco Central se preocupou
mais e optou por
ser ultraconservador. Conheceremos a verdadeira
face do Banco
Central em 2004.
Aí nós já teremos
uma meta aparentemente viável de alcançar. Vamos ver a audácia do Banco Central e até onde ele quer se arriscar.
Em geral, as pessoas não gostam
de associar as palavras "arriscar" e
"audácia" com bancos centrais,
com razão. A arte é fazer sem parecer audacioso ou arriscado.
Em matéria de taxa de juros, outra coisa que tem de ser discutida
é a meta de inflação. A de 2005 já
está fixada em 4,5%. Talvez nós
devêssemos discutir se o nível de
4,5% é desejável. Se chegarmos à
conclusão de que para ter 4,5% é
necessária uma taxa de juro real
de 8% a 10%, eu abriria mão de
4,5%, deixaria a inflação em 5,5%
e tentaria baixar os juros.
Talvez o Brasil ainda não tenha
avançado o suficiente institucionalmente para gerar inflação de
3%, 4% sem praticar juros elevados, o que é um preço muito alto.
Não vejo nada de errado em uma
inflação de 6% se perpetuar por
mais alguns anos. É um debate
que vamos ter de fazer em 2004.
Folha - O sr. admitiria inflação
maior para ter mais crescimento?
Eris - Se em condições de normalidade descobrirmos que o BC
realmente não
tem como baixar
os juros reais a
menos de 8% a
10%, vamos ter de
discutir as metas
de inflação.
Há outro assunto na política macroeconômica
que precisa ser debatido um pouco
mais, que é a política cambial. Sou
adepto de longo
tempo do câmbio
flutuante, e ele se
mostrou eficaz em
crises. A questão a
discutir é se há espaço, dentro do
câmbio flutuante,
para a ação corretiva do Banco
Central, e eu julgo
que há.
Folha - O sr. acredita que o real esteja sobrevalorizado?
Eris - Ou não. Nós passamos por
uma crise em 2002 e no início de
2003 que resultou em maciça venda de nossas reservas, e nossas reservas líquidas estão muito baixas. Isso é uma unanimidade. Isso
em geral quer dizer que o Brasil
está praticando um nível de câmbio fora de equilíbrio. O equilíbrio
seria aquele câmbio consistente
com o Banco Central sustentar reservas mais altas que as de hoje.
Segunda coisa: devido à mesma
crise, o Banco Central tem dado
hedge [proteção contra oscilações
na cotação do dólar] ao setor privado em quantidades bastante
elevadas. Toda vez que o setor público dá hedge ao setor privado
em épocas de normalidade, ele está deprimindo a taxa de câmbio
[deixando o dólar com uma cotação menor]. E faz a mesma coisa
ao não manter o nível de reservas
de equilíbrio.
Seria uma ação corretiva do
Banco Central, anunciada, recompor reservas líquidas até chegar a uma meta, que não precisa
ser explicitada inicialmente. A
mesma coisa pode ser feita com
hedge, o Banco
Central anunciar
que vai diminuir o
volume de hedge
dentro de determinada programação. É uma
ação corretiva
porque coloca o
câmbio flutuante
no equilíbrio.
Câmbio flutuante
a gente não quer
por querer. Queremos porque
achamos que forças de mercado
vão colocar o
câmbio em um
patamar que seja
sustentável ao
longo do tempo.
Logo, ele vai sinalizar aos agentes
econômicos um
valor de dólar que
vai permitir a eles
tomarem decisões, como exportar, importar e
investir.
Folha - Qual seria a taxa de câmbio de equilíbrio hoje?
Eris - Não sei nem quero saber.
Folha - Mas o real estaria sobrevalorizado?
Eris - Hoje, possivelmente, sim,
mas amanhã posso querer ações
corretivas do Banco Central no sentido oposto.
Outra questão
polêmica é o crescimento de equilíbrio da economia
brasileira. Certamente não é zero,
nem 1%, nem
-1%. Nem a taxa
média de 2,5%
dos últimos anos.
Se a economia está crescendo abaixo do que poderia, isso também
quer dizer que o
câmbio está deprimido. Esse
câmbio que está aí
está resolvendo
problemas de balanço de pagamentos com crescimento zero.
Nós podemos
comprar ou vender dólares no
mercado para
corrigir certas distorções. Infelizmente, grande
parte das distorções hoje vão na
direção de deprimir o câmbio, e
não na de desvalorizar o real.
Folha - Não dá
para ter o discurso
de que o BC não intervém no câmbio
porque ele é flutuante?
Eris - Quem segue esse discurso
é que não entende
o que é câmbio
flutuante. Acha
que câmbio flutuante em qualquer hipótese gera
uma taxa que seja
eficiente.
Finalmente, na
área fiscal, acho
que a política que
está aí é inviável a
longo prazo. Ela
sufoca todos os
agentes. Trabalha com carga tributária extremamente elevada,
muito mal distribuída, indutora
de sonegação, cheia de distorções.
E, mesmo com excessiva carga tributária, não restam recursos para
o governo fazer o mínimo necessário na área social ou de infra-estrutura. Teremos de achar meios
de baixar o superávit primário,
baixar certos tributos, com espaço de investimento para o setor
público.
Folha - Isso é tarefa para 2004?
Eris - Para 2004, não, mas 2005
pode ser. Isso está intimamente ligado à questão dos juros, à questão inflacionária e à audácia do
BC. Se provássemos que é viável
ter inflação de 5% ou 6% e juro
real de 4%, precisaríamos de superávit primário bem menor para
estabilizar a dívida pública.
Folha - Hoje parece uma heresia
falar em superávit inferior a 4,25%.
Eris - Então eu
sou herege. Obviamente, 4,25%
ou 3,5% tem de
ser transitório. É
como se tivéssemos cometido um
crime e estivéssemos pagando por
nossos pecados.
Mas, uma vez pagos os pecados, temos o direito de ir
ao céu.
Não estou falando para fazer isso
amanhã. Mas a estratégia de médio
e longo prazos
tem de ser essa. O
que eu não sei é se
3%, 4% de juro
real no curto prazo seria consistente com uma inflação muito abaixo
de 5% ou 6%. Eu
admito uma inflação de 6%, 7%, até 8%, se isso for
necessário para baixar o juro real
a 3% ou 4%. Pagaremos um custo
para reduzir a inflação que certamente não vale a pena. Eu acho
que dá para sustentar a inflação
em 5% e 6% com taxa de juro real,
na Selic, de 3% a 4%. Que quer dizer 10% nominal.
Se Deus me disser "Ibrahim, 3%,
4%, só com 7% de inflação", eu digo "comprei". Porque eu não tenho a idéia de que a partir de "x" a
inflação explode. Nos próximos
cinco anos, é mais importante
achar meios de viabilizar juro real
pela Selic em 3%, 4% do que uma
inflação indo de 5% para 3%. Aí,
sim, começa o círculo virtuoso.
Folha - Mas a necessidade de financiamento externo do país não é
um limite para a queda dos juros?
Se cair muito não há o risco de o
país ter uma fuga de capitais?
Eris - Há um mérito no "spread"
alto que temos entre a Selic e a taxa final. Os juros atuam em dois
sentidos: no setor público, e o que
falei até agora é setor público, e no
setor privado. A questão de fuga
de capital se refere mais ao que o
setor privado vai pagar. Quando a
taxa real Selic é de 3%, 4%, a taxa
do setor privado ainda é muito
mais elevada do que lá fora.
Por que você acha que eu levantei a questão do câmbio? Porque
essa dependência eterna do capital externo também tem de começar a ser encaminhada e, para isso, temos de ter um câmbio que
seja de equilíbrio. Quando tivermos isso, vamos ver uma revolução, que começa com exportações
e continua com importações.
Vou ficar feliz da vida se, em vez
de US$ 20 bilhões de superávit comercial, tivermos US$ 15 bilhões,
só que as exportações, em vez de
US$ 60 bilhões, forem de US$ 200
bilhões, e as importações, de US$
185 bilhões. Nosso objetivo tem
de ser esse. Com esses volumes,
1% de variação significa, em vez
de US$ 600 milhões, US$ 2 bilhões, sua dívida parece menor,
suas necessidades de financiamento parecem menores.
Não quero diminuir a importância da agenda microeconômica e da política comercial, mas
achar que vamos conseguir essas
duas coisas sem o câmbio correto
é totalmente errado.
Câmbio correto e taxa de juros
correta são condições necessárias.
Pode até ser que a economia não
cresça, mesmo tendo isso, mas,
certamente, sem isso ela não vai
crescer. O único jeito de começar
o processo de aumentar o volume
do comércio exterior é ter um
câmbio alinhado.
Folha - Qual seria o volume adequado de reservas líquidas?
Eris - Não há uma resposta definitiva. As reservas líquidas, descontado o empréstimo do FMI,
deveriam ser o dobro de hoje. Ou
seja, há uma deficiência de no mínimo US$ 20 bilhões. Se quisermos ser um "player" significativo
no mundo, não podemos trabalhar com reservas de US$ 18 bilhões. Provavelmente, com essas
ações corretivas, o real vai ser
mais desvalorizado do que hoje.
Quanto mais, eu não sei. Se for
muito mais, eu diminuiria o ritmo
de ajuste. Obviamente, corrigir de
um dia para o outro essas distorções, ao custo de colocar o câmbio
a R$ 4,00, seria maluquice.
Folha - Não há um risco político
de o mercado perceber uma eventual ousadia do BC como uma mudança de rumo do governo Lula,
que poderia perder a confiança
conquistada até agora?
Eris - O investidor não vai emprestar ao Brasil porque vai saber
que um país que não cresce não é
viável a longo prazo. Essa unanimidade de crescimento em 2004 é
que está segurando um pouco as
coisas. Se houver uma frustração
em 2004, que não pode ser descartada, porque estamos dependendo de um consumidor que está
saindo de um trauma, ou ficar demonstrado que 2004 foi um vôo
de galinha, eu garanto que o próprio estrangeiro vai pedir meios
para se chegar ao crescimento.
O objetivo final de toda a economia é crescer, é a felicidade da sociedade. O objetivo final da política econômica não é inflação baixa. É melhor o [Henrique] Meirelles [presidente do BC] entregar
crescimento para o Lula, porque
senão o Lula não vai querer essa
política. No lugar dele, eu não iria
querer. Se essas políticas atuais,
com os números que estão sendo
ventilados aí, fazem parte da modelagem deles, temos de ver se isso vai resultar em crescimento ou
não. Se resultar em crescimento,
resolvido o problema. Eu tenho
certeza de que não vai. No máximo, vai ser um vôo de galinha.
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