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OPINIÃO ECONÔMICA
Algodão entre cristais
RUBENS RICUPERO
Confesso ter-me surpreendido
com a amplitude que alcançaram
no Brasil as comemorações dos dez anos
do Real e o balanço positivo resultante
do aniversário. Não sei bem o que esperava, mas era menos. Talvez, da parte
do governo, indiferença e silêncio. Talvez, do lado dos críticos, hostilidade
mais corrosiva ante os erros de execução
do plano. Um pouco disso tudo certamente houve.
Favas contadas, entretanto, e admitidas as insuficiências, uma constatação
prevalece nitidamente: o que ficou do
Real é a estabilidade, por relativa que
seja. A vitória contra a hiperinflação, a
sensação de voltar a ter uma moeda
eram o começo de um caderno novo, as
fundações de monumento a ser construído. A opinião pública revelou compreender que aquilo que se viria a escrever no caderno, a beleza da escultura, os
erros e acertos ulteriores não deveriam
ser atribuídos àquele instante de lançamento do Real. Pertenciam a uma outra
história.
Neste 1º de julho, eu já não estava no
Brasil, mas, mesmo de Nova York ou
Porto Rico, continuei a atender as estações de rádio que me telefonaram. Nessas entrevistas e nos dois artigos precedentes desta coluna, lembrei a mobilização da cidadania e a importância
crucial da autonomia, de não ter acordo
com o FMI, como condições da possibilidade de introduzir a moeda. Falei menos, ou quase nada, de outro aspecto
fundamental: a intermediação entre o
mundo político e social, simbolizados
no presidente Itamar, e o da lógica econômica do plano, de que era guardiã a
equipe responsável pela sua concepção e
aplicação.
Nessa intermediação, coube-me o papel ingrato de algodão entre cristais. Ingrato porque, mal ou bem, por paus e
por pedras, conseguiu-se que os cristais
não se rompessem, que não se perdesse
um só da equipe que me fora confiada,
embora no esforço quem acabasse por se
quebrar fosse eu mesmo. Essa, porém, é
novamente outra história. A que hoje
quero contar é a primeira, a da missão
de mensageiro, de ponte, entre os dois
pólos indispensáveis, insubstituíveis,
para que o plano tivesse êxito.
Tal missão estava clara desde o começo. Quando, nos últimos dias de março
de 1994, o presidente me convidou para
suceder a Fernando Henrique Cardoso,
principiei por recusar, conforme fizera
antes, logo depois do "impeachment" de
Collor. Não pela virtude da humildade,
mas em razão do medo diante de formidável responsabilidade. Vendo que, dessa vez, a recusa não era mais viável, perguntei, resignado, o que o presidente
queria que eu fizesse. A resposta "ipsis
litteris" foi: "Quero que o senhor aplique
o plano, com a equipe que está aí". Redargüi que me sentia aliviado com isso,
pois eu mesmo não seria capaz de formular plano alternativo. Quanto aos
membros da equipe, eram todos meus
amigos ou conhecidos, exceto Clóvis
Carvalho, que só viria a conhecer e admirar a partir de então.
Diplomata profissional, percebi que
dispunha do que o diplomata mais necessita e aprecia: instruções precisas.
Não havia dúvidas acerca da missão ou
de como cumpri-la. Nunca me afastei
do que me fora prescrito naquele fim de
tarde, em "tête-à-tête" com o presidente
Itamar, na salinha particular contígua
ao seu gabinete oficial, onde vi, como
bom augúrio, que ele guardava a imagem de santa Terezinha.
Foram muitos, desde aquela tarde, os
episódios de extrema tensão entre a política e a economia: a campanha de aumento dos militares, sua inevitável extensão, por isonomia, aos funcionários
civis, o desejo de elevar o salário mínimo a US$ 100, o reajuste das mensalidades escolares, os critérios de atualização
de contratos, o tabelamento dos juros, a
tentação do congelamento de preços, as
pressões mensais das contas dos hospitais e da saúde, o projeto de transposição das águas do São Francisco e a volta
recorrente, obsessiva, do problema dos
vencimentos de militares e civis.
Em todos esses episódios, salvo no das
mensalidades, atrevo-me a pensar que
fui fiel às instruções, fazendo ver que algumas das soluções aventadas, por justas que fossem, eram incompatíveis com
as condições estipuladas pelo próprio
presidente: o plano teria ficado em frangalhos, e a equipe seguramente abandonaria o barco.
Em situações semelhantes, o problema
nasce de que ambos os lados têm razão.
Ou melhor, têm parte da razão, pois a
parcela complementar está do outro lado. O presidente possuía aguda sensibilidade social e política. Caso raro em
nossa vida pública, na qual, com freqüência e impunidade, se muda não só
de partido -é o de menos com esse ordinário sistema partidário- mas sobretudo de princípios, trata-se de político fiel a sólidas convicções progressistas
e nacionalistas. Os integrantes da equipe eram também pessoas de grande integridade, de acentuado rigor econômico, mas de orientação doutrinária diferente, e alguns revelavam impaciência
maior ou sensibilidade menor, em relação aos limites do que era possível do
ponto de vista social e político. Encontrar o equilíbrio entre essas forças puxando em direções opostas, estabelecer
um denominador comum razoável entre personalidades de formação e inspiração tão diversas, foi o meu pão cotidiano.
Tenho a impressão de que muitas das
situações conflitivas foram, assim, inevitáveis, e algumas nasceram de mal-entendidos. Foi o que por um triz quase
ocorreu na véspera de 1º de julho, quando a aprovação da MP do Real tropeçou, na Presidência, com incompreensões que me fizeram temer haver perdido a confiança do presidente para poder
continuar no cargo. Apesar dos sustos,
acabou não me faltando naquele instante e nos outros, antes e depois, o
apoio e a confiança do presidente. Da
mesma forma, jamais deixei de contar
com a invariável assistência, orientação
e lealdade de uma equipe de luxo, que
faria honra a qualquer país desenvolvido.
Nesses dias propícios a reminiscências, tenho refletido muito sobre se, no
afã de explicar o plano à população,
não descurei de outras coisas, por exemplo, de um esforço maior dentro do governo. No final e em balanço, teve razão
o presidente Itamar, não obstante o ceticismo geral, em insistir e perseverar na
certeira intuição política de que, ainda
nas condições adversas de 1993 e 1994,
um plano eficaz contra a inflação era
possível.
Também tiveram razão Fernando
Henrique e os brilhantes colaboradores
de que se cercou em crer que só a inventividade intelectual de brasileiros conhecedores da própria realidade, não
fórmulas importadas do FMI e de alhures, seria capaz de dominar inflação
inercial altíssima, com décadas de indexação.
No final, as tensões não causaram dano irreparável. O importante foi que o
Real entrou a circular, na data e nas
condições anunciadas, e, em pouco tempo, a hiperinflação passou a ser memória do passado. Ter participado, por
tempo breve mas intenso, daquela que
foi uma de nossas "finest hours", ter sido
algodão entre cristais nessa aventura
magnífica, foi privilégio que vale uma
vida.
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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