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ARTIGO
As mentiras de Wall Street, na opinião de um dos mentirosos
KATE JENNINGS
No mês passado, durante a
temporada de divulgação de
balanços e assembléias de acionistas, as empresas norte-americanas
reasseguraram o compromisso
com os chamados "valores centrais", como integridade, liderança, disciplina, responsabilidade,
respeito e excelência.
Os jornais estão repletos de relatos de lapsos nesses mesmos "valores centrais". Durante os anos
do boom dos mercados financeiros, na década de 90, eu escrevia
discursos para os grandes bancos
de investimentos de Wall Street.
Ao lembrar desses textos, é difícil
encontrar algo que tenha escrito
que não apresente exageros, mentiras, evasivas ou uma lógica invertida. Mas, enquanto meus elaborados discursos mantiveram
um otimismo agressivo, ninguém
se incomodou.
É certo que os cínicos faziam
piadas sobre o jargão. "Agregar
valor", dizíamos, era um código
para "demitir funcionários e aumentar o preço das opções de
ações". Na época, bancos estavam
praticamente fabricando dinheiro, investidores nadavam em dólares e todos os bolsos estavam
forrados de gratificações.
Agora, quando se revela a extensão da audácia então praticada,
não só em empresas agressivas e
iniciantes, mas também nas grandes companhias e nos maiores
bancos do mercado, ninguém
mais vê graça. Os executivos proclamavam integridade enquanto
manipulavam resultados e embolsavam opções de ações.
Muralha demolida
Os executivos gostavam de ostentar frases como "foco no cliente" e "homem de confiança", enquanto demoliam "muralhas da
China" e criavam conflitos de interesses ("muralha da China" é um
jargão de Wall Street para a separação entre analistas de executivos
em bancos de investimento, necessária para que os analistas não
recomendem investimentos do
interesse do banco).
Nem todos os executivos agiram
assim, é claro. Mas estamos passando por um maremoto de hipocrisia. Tal sentimento solapa a fé
não só naqueles para quem governança corporativa é coisa de maricas. Desacredita também executivos que levam a sério suas obrigações para com todos que dependem deles: clientes, acionistas,
empregados, aposentados e sociedade em geral.
Apesar de tudo, os exageros retóricos das empresas continuam,
sem controle, o que me sugere
uma citação de George Orwell: "Se
o pensamento corrompe a linguagem, a linguagem também pode
corromper o pensamento". O jargão dos analistas de investimento,
que no momento passam pelos
seus 15 minutos de escrutínio público, serve como exemplo perfeito.
No passado, quanto o trabalho
de pesquisa era uma ocupação
monótona, os analistas ofereciam
recomendações de compra, venda
e retenção para as ações. Mas,
quando se transformaram em figurões de TV, decidiram expandir
suas classificações e adotaram categorias contraditórias como
"acumular", "desempenho de
mercado" e "visibilidade reduzida". Filtre as percepções por meio
desse tipo de palavreado, banque
o processo com um salário interessante e todos os "valores centrais" rapidamente perdem a consistência.
Depois de muita hesitação, o
Merrill Lynch está propondo que
seus analistas retornem ao antigo
sistema de três recomendações
básicas. Por que o banco teve de
esperar que Eliot Spitzer, procurador do Estado de Nova York, decidisse agir a respeito antes de tomar
essa medida? Os analistas agora
podem voltar a dizer o que devem,
sem meias palavras.
Integridade
Se pensarmos bem no assunto,
deveríamos pedir o mesmo a todo
executivo. Mas é uma probabilidade remota, se levarmos em conta o
uso desavergonhado de palavras
como "integridade" e "excelência"
nos balanços de empresas que estão sob investigação ou foram
multadas por delitos.
As empresas parecem ter se esquecido de que integridade e excelência eram os valores da Enron
(energética que quebrou no ano
passado), gravados em bugigangas e decorando escrivaninhas em
toda a empresa. São palavras que
precisam de um longo repouso no
mundo corporativo. Elas perderam o valor, até mesmo para as
empresas que as respeitam.
Os relatórios anuais do mês passado exibem espantosa desconsideração aos sentimentos do público. É mais uma prova daquilo que
promotores e consultores já descobriram nesse mundo pós-colapso da Enron: muitas companhias
simplesmente ainda não entenderam.
Trancados em seus arranha-céus suntuosos, por trás de uma
blindagem de arrogância, protegidos por falanges de advogados e
profissionais de lobby, os executivos não parecem compreender
que nós -clientes, acionistas, empregados, aposentados- estamos
cansados da distância entre suas
intenções reais e suas intenções
declaradas.
Estamos cansados de desinformação e intimidação, petulância e
condescendência. Estamos cansados desse espírito que oferece respeito superficial aos "valores" mas
rotineiramente atravessa a fronteira entre o legal e o criminoso.
Estamos cansados de empresas
que nos dizem que não precisam
de regulamentação, que são capazes de se fiscalizar, quando todas
as indicações sugerem o contrário.
Estamos cansados da defesa automática baseada em alegações de
"acusação infundada" que as assessorias de imprensa corporativas costumam empregar, e das
subsequentes disputas judiciais
que duram uma eternidade. Estamos cansados de atos paliativos de
civilidade corporativa. Não aceitamos a idéia de que o uso de palavras como "integridade" e "excelência" é válido na comunicação
das grandes empresas porque as
palavras representam uma aspiração para elas. Queremos que se
tornem fatos.
Kate Jennings, que trabalhou para bancos de investimentos, escreveu "Moral
Hazard" ("Risco Moral"), um romance sobre Wall Street. Este artigo foi publicado
pelo "Financial Times".
Tradução de Paulo Migliacci
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