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LUÍS NASSIF
A casa da minha infância
Tem certos dias em que a
solidão convoca uma assembléia geral da minha vida.
Eu nem vacilo, pego o carro,
deixo para trás estresse e infovidas, atravesso fazendas e herdades e, depois delas, a montanha.
Ah, esse mergulho no tempo,
nas lembranças, esse revolver
de emoções tão soterradas pelo
burburinho infernal das metrópoles e pelo ritmo dos tempos.
As lembranças vão enchendo
o buffer da memória e corro
para chegar à cidade antes que
amanheça e que o sol espante a
magia. Chego ao jardim, reformado de acordo com o projeto
original, e espreito os fantasmas que saem da bruma de
uma noite fria. Dispo-me, então, das pompas contemporâneas e entro na casa que não
mais havia.
Lembro-me do quartão do
fundo, onde abrigava minha
solidão de recém-saído da infância buscando ansiosamente
o mundo por meio das ondas
curtas de um rádio de rabo
quente. Ou o barracão que registrou momentos de festa. Ou
ainda o outro quarto do quintal onde, em um período qualquer da minha infância, seu
Oscar tentou fabricar a linha
de perfumes Temarelu (de Teresa, Maria Regina e Luís). E
ainda o telhado de fora, onde
eu subia com um cavaquinho e
despejava versos improvisados
nas irmãs e primas mais novas.
Lembro-me especialmente
das festas de Natal, em que se
juntavam nossa família e a da
tia Rosita. As primas preparavam prendas e missões que
eram sorteadas. Ao meu pai
coube dançar tango. Ao doutor
Fabrino, que fora passar a noite conosco, um discurso sobre
Papai Noel.
Mas as lembranças não param e, antes que pudesse sorrir
da cena, desaba sobre minha
memória o último contato com
a casa. Hoje em dia anda meio
largada e me provoca indagações de antigamente. Nem me
lembro de quem meu pai a adquiriu, logo que casou, antes de
eu nascer, acho que de um senhor que enviuvou. Num dia
qualquer de 1974 mudou de
mãos, passando para novos donos. Era mês de julho, deixei
São Paulo, onde morava desde
1970, subi a montanha e olhei
pela última vez a casa, vazia,
sem móveis, sem vida, enquanto o caminhão levava a mudança e o desgosto de dona Teresa e seu Oscar rumo à metrópole.
Até alguns anos atrás, quantas noites atravessei com pesadelos, com aquela imagem da
casa vazia, sem vida, me atormentando o sono, sempre prenunciando alguma notícia
ruim que viria em seguida.
Mas é nas sombras das árvores do jardim do Pálace, projetadas pela luz de uma lua forte,
que revejo a casa, meus mortos
mais amigos, a minha afinidade mais constante, em plena
noite fria e remendada.pelo infinito de tantos momentos. Aí o
portão dos tempos escancara e
eu me vejo infante e antigo.
Vejo dona Teresa mais nova
do que hoje sou e seu Oscar,
que deveria ter a idade que hoje tenho. E essa invasão das
fronteiras do tempo mistura
tudo, dos conflitos que, adolescente, tive com meu pai para,
em seguida, vê-lo de agora. E
relembro a angústia, a crise financeira da Farmácia Central,
herança da grande recessão da
segunda metade dos anos 60,
da impotência em não poder
ajudá-lo mais do que metade
do salário que ganhava em início de carreira.
Lembro-me mais, de uns dez
anos atrás, em que sonhava
com ele, tentando aconselhá-lo
a reestruturar a farmácia, a reduzir o número de funcionários. E ele, no sonho, me dizendo angustiado que não podia
dispensar o Rafael, a Neusa, o
Januário. Depois, um tempo
depois, lembro encontrando o
filho do Rafael, que trabalhou
com seu Oscar mais de 30 anos,
para me informar que o pai
havia morrido e que, pouco antes de morrer, sonhara com o
antigo patrão angustiado, pedindo que o ajudasse a sair da
crise. A data batia com a do
meu sonho.
Assim, vou dispondo as lembranças como minha mãe escolhia arroz com as mãos. Separo mágoas vagas e concretas,
as pedras das incompreensões.
Aos poucos, a casa vai se povoando, ganhando vida, e a alma sendo acalmada. E limpos
o arroz, a alma e a mente, o coração explode finalmente, pacificando as emoções.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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