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ARTIGO
A China e o futuro do Brasil
MAURICIO MESQUITA MOREIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Muito se tem escrito sobre
as maravilhas do milagre
chinês e sobre as oportunidades
oferecidas por um mercado potencial de 1,3 bilhão de consumidores. O entusiasmo é visível entre os produtores de commodities, que têm desfrutado de vendas
e preços recordes, e entre os membros do governo que não se cansam de ressaltar as vantagens políticas e econômicas de uma aproximação com os chineses. Não há
nada de fundamentalmente errado com esse entusiasmo, a não ser
pelo fato que ele tem encoberto
outra dimensão não menos importante do milagre chinês: a China como competidora.
Nessa outra dimensão, a palavra-chave é indústria. Gerações de
brasileiros cresceram com a noção de que o desenvolvimento do
país estaria estreitamente associado à industrialização -e não foi
por acaso. Foi por meio da indústria que o país atingiu taxas recordes de crescimento e amadureceu
politicamente. Pois bem, a China
levanta sérias dúvidas sobre a
atualidade dessa visão. É bem verdade que essa não é a primeira vez
que isso acontece. Pelo menos três
gerações de tigres asiáticos deixaram claro que, se o Brasil realmente desejava seguir crescendo via
manufatura, estava fazendo algo
de errado. O questionamento chinês, no entanto, vai mais longe e
está fundamentado em três características principais da economia
chinesa: a oferta de mão-de-obra,
o crescimento da produtividade e
o grau de intervenção do Estado.
Vejamos a questão da mão-de-obra. A dimensão da população
chinesa, combinada com um nível
educacional em geral superior ao
do Brasil, representa um desafio
sem precedentes. A implicação
mais imediata é um nível salarial
cerca de um terço daquele praticado no país. Como a China tem
ainda cerca de 50% da sua mão-de-obra na agricultura, é pouco
provável que esse hiato venha a
diminuir significativamente em
um futuro próximo.
A manutenção de salários relativamente baixos por um período
prolongado de tempo permitirá
que a China mantenha sua competitividade em produtos intensivos em trabalho por um período
maior e em uma escala superior
àquela experimentada pelos tigres
asiáticos, ao mesmo tempo em
que diversifica em direção a produtos mais intensivos em capital e
em tecnologia.
O quadro não seria tão preocupante se os salários mais baixos
fossem a contrapartida de uma
produtividade mais baixa. As evidências nesse sentido são escassas, mas sugerem que se, de fato, a
produtividade na indústria brasileira é em geral mais elevada do
que na China, essa vantagem é pequena e está longe de compensar a
diferença salarial. E para complicar ainda mais as coisas, essa vantagem vem caindo rapidamente,
uma vez que o crescimento da
produtividade na China tem sido
cerca de cinco vezes mais rápido
do que no Brasil.
Infelizmente, os problemas não
param por aqui. Um desafio tão
grande ou maior que o binômio
salário/produtividade é o da intervenção agressiva do Estado chinês
na economia. Não se trata aqui de
discutir se essa intervenção é eficiente ou não do ponto de vista
dos chineses, mas sim o fato de
que ela gera práticas, digamos,
não-convencionais de competição que dificilmente seriam toleradas pela comunidade internacional se fossem praticadas por
outro país do Ocidente.
A lista de praticas é grande e o
espaço é curto, mas, por exemplo,
o Estado chinês provê aos produtores locais uma oferta de crédito
favorecido em uma escala tal que
faz o BNDES (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e
Social) parecer irrelevante. Os
subsídios à pesquisa e ao desenvolvimento são também generosos, socializando os riscos da inovação, ao mesmo tempo em que o
governo "olha para o outro lado"
quando o assunto é direito de propriedade intelectual. E, para completar o pacote, a política comercial é inspirada nas de outros felinos asiáticos, mas com requintes
de socialismo de mercado. Ou seja, para os exportadores, tudo; para os importadores, a lei. E a lei é
extremamente complicada, principalmente se o importador não
tiver um bom contato com o partido ou se não puder contar com o
poder de persuasão de um governo como o norte-americano.
Não à corrupção
Diante desse quadro, a pergunta
que se faz é: como o país deve reagir a esse desafio? É preciso ter claro, em primeiro lugar, que, qualquer que seja a resposta, suas implicações vão muito além das relações bilaterais Brasil-China. Na
realidade, a resposta deve refletir
a maneira que o país vê o seu futuro na divisão internacional do trabalho. Uma opção que tem sido
sugerida a outros países latino-americanos poderia ser resumida
em uma frase: "Esqueçam a manufatura!".
Na base desse conselho está
uma visão de que existem outras
vias possíveis de desenvolvimento, baseadas em recursos naturais,
que estariam mais próximas da
vocação da região. Se essa é a
perspectiva que prevalece, o desafio chinês fica muito mais palatável. Brasil e China teriam economias confortavelmente complementares, mas ainda assim caberia ao governo a tarefa, não trivial,
de minimizar os custos sociais do
encolhimento significativo de um
setor que representa hoje cerca de
35% do PIB (Produto Interno
Bruto).
Se a percepção que predomina,
e a que parece mais correta, é a de
que um país como o Brasil -com
vasta população para empregar- não pode se dar ao luxo de
ser competidor marginal em uma
atividade que, nos últimos 200
anos, foi a principal responsável
pelo enriquecimento da imensa
maioria dos países, a resposta tem
de ser radicalmente distinta. A
resposta precisa levar em consideração que, com a China no
mercado, não há mais tolerância
para ambientes macroeconômicos instáveis, juros estratosféricos, carga fiscal elevada, infra-estrutura deficiente e mão-de-obra
não-qualificada. Tampouco há
tolerância para debates sectários
sobre o papel do Estado na economia. É preciso que se desenhem
políticas e instituições que sejam
ao mesmo tempo capazes de evitar a corrupção e de atuar de forma eficaz em áreas como finanças
e tecnologia. Por fim, é preciso
que a política comercial reflita essas aspirações industriais e que dê
o máximo de prioridade à abertura dos mercados do Norte, ao
mesmo tempo em que assume
uma atitude mais realista com relação aos competidores do Sul.
Cabe, por exemplo, perguntar se
interessa ao Brasil, face a tudo que
foi dito acima, conceder à China o
status de economia de mercado,
passo que restringiria em muito
nossa capacidade de defesa comercial.
Enfim, se o país acredita que seu
futuro e seu desenvolvimento ainda passam pela indústria, é imperativo que a percepção sobre a
China deixe de ser unidimensional e idealizada. A emergência dos
chineses no mercado internacional congestionou perigosamente
a via industrial para o desenvolvimento. A resposta tem de ser rápida e à altura, até porque há outros choques -tais como o da Índia- a caminho.
Mauricio Mesquita Moreira é economista do Departamento de Integração
do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).
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