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OPINIÃO ECONÔMICA
Viajar de 1ª
RUBENS RICUPERO
Despeitados com a desenvoltura internacional dos
franceses, alguns dos seus vizinhos europeus gostam de dizer
que eles são como passageiros que
viajam em 1ª classe, embora só tenham no bolso bilhete de 2ª. Típica da dor-de-cotovelo, a frase vira
elogio se o contraventor, em vez
de humilhantemente expulso do
conforto dos privilegiados, termina a viagem festejado e aplaudido por esses últimos. Afinal, da
miríade de definições imagináveis de diplomacia, uma perfeitamente cabível é que se trata da arte de viajar de 1ª, tendo apenas
passagem de 2ª.
O que, de fato, se esconde por
trás do sarcasmo? O bilhete de 1ª
ou 2ª é obviamente o poder internacional, realidade complicada
que também admite inúmeros
conceitos. O mais simples ou simplista é afirmar que o poder é a
capacidade de um Estado de obrigar outro a agir de determinada
maneira ou a abster-se de fazê-lo.
Nem sempre, contudo, a vontade
de um é imposta ao outro por
coação. Com frequência obtém-se
o mesmo resultado pela persuasão, a promessa de compensações,
o apelo ao interesse comum de
cooperar, a utilização sistemática
de todos os recursos jurídicos, enfim, a enorme gama de instrumentos do que se chama de "soft
power", o poder suave ou não-contundente.
Não sei se os leitores têm consciência de que acabamos de assistir a uma das melhores demonstrações de diplomacia dos últimos
tempos, tanto da variedade de saber administrar o próprio poder,
quando ele chega a ser excessivo,
quanto da modalidade que dá título a esta coluna, isto é, nas ocasiões em que ele é insuficiente. O
secretário de Estado Colin Powell
foi o herói indiscutível do primeiro tipo, o de lidar com o próprio
poder em excesso, nem por isso a
tarefa mais fácil. Teve, primeiro,
de exercer a diplomacia em relação à maioria dos companheiros
de governo, persuadindo-os de
que dispor de força mais que suficiente para aniquilar o Iraque
não é razão bastante para usá-la
sozinho.
Buscar o consenso internacional pode parecer caminho mais
abrupto, mas compensa: confere
legitimidade, amplia a possibilidade de dividir o ônus com aliados, isola o adversário, facilita a
colaboração dos árabes. Melhor
ainda é quando, graças à dosagem de pressões, paciência e capacidade de transigir no não-essencial, consegue-se o triunfo inesperado de resolução unânime do
Conselho de Segurança da ONU,
com o voto positivo até de um
país árabe acima de qualquer
suspeita como a Síria.
Powell confirma, assim, as excepcionais qualidades reconhecidas pelos que o conheceram em
Washington. Poderá vir a ser um
segundo George Marshall, como
ele general, ex-chefe do Estado-Maior, que se tornou um dos
maiores condutores da diplomacia americana, dando o nome ao
grande plano de reconstrução da
Europa. A consolidação de sua
influência augura bem para o futuro das relações com o Brasil,
país que o secretário de Estado sabe apreciar e valorizar, conforme
hão de atestar todos que ouviram
o memorável discurso com que
agradeceu, na embaixada do
Brasil em Washington, em fevereiro de 1993, à condecoração militar de que lhe fiz entrega.
Predomina sem rivais na segunda categoria o presidente Chirac, secundado por seu brilhante
chanceler, Dominique de Villepin. Liberado dos constrangimentos da divisão do poder com os socialistas, deixando ao primeiro-ministro a rotina absorvente do
dia-a-dia do governo, o presidente devolveu à França as horas
mais gloriosas da diplomacia
gaullista, sem o mesmo estilo arrogante e ofensivo (salvo em relação a Blair). A reconstituição do
eixo com a Alemanha permitiu-lhe alijar para escanteio a pretensão inglesa à liderança européia,
com base no apoio de governos
mais à direita, como os de Aznar
e Berlusconi. Impôs, assim, em
Bruxelas decisão que assegura a
continuação dos subsídios agrícolas mesmo após a adesão de dez
novos membros à União Européia, o que poderá ter sérias implicações para os interesses comerciais brasileiros.
Vitória muito mais saudável
para a comunidade internacional
como um todo foi a resistência
que opôs à tentativa de arrancar
do Conselho de Segurança resolução precipitada. As sete semanas
desse fascinante braço-de-ferro
franco-americano não foram excessivas, dada a extrema gravidade da questão. Deram tempo para
que Colin Powell montasse internamente sua contra-ofensiva para prevalecer sobre os falcões e a
fim de amolecê-los pelo espetáculo das manifestações de desaprovação dos europeus e árabes. Possibilitaram, sobretudo, que as
duas posições opostas se aproximassem gradualmente.
Evitou-se, de um lado, a carta-branca para um ataque imediato,
mediante a exigência de dois
tempos, o primeiro para as inspeções, o segundo para as eventuais
sanções. Definiu-se, por outro, regime rigoroso de verificação, que
não deixa sombra de dúvida sobre as consequências nefastas e
instantâneas de possível má-fé na
implementação. No fim, o projeto
americano foi aprovado por todos, após extensamente modificado. A França, os EUA, todos saem
ganhando, mas, acima de todos, a
ONU, que vê reforçado seu papel
de instância mais alta da legitimidade internacional. Recoloca-se também firmemente a questão
no terreno de onde jamais deveria ter saído, o único consagrado
nas resoluções que puseram fim à
Guerra do Golfo: o desarmamento do Iraque em armas de destruição de massa. É essa a base exclusiva da legalidade da resolução,
não a mudança de regime ou outro motivo qualquer. Alcançou-se, desse modo, um daqueles raros
resultados que o barão do Rio
Branco louvava com essas sábias
palavras: "As combinações em
que nenhuma das partes interessadas perde, e, mais ainda, aquelas em que todas ganham serão
sempre as melhores".
Numa época em que o Brasil tinha muito menos poder, tanto em
termos absolutos como em relação aos vizinhos, Rio Branco foi
capaz de desenvolver política externa de grande criatividade,
dando-lhe às vezes a possibilidade de viajar de 1ª classe, sem bilhete apropriado. Cem anos depois muita coisa mudou, mas não
se alterou o fundamental. Contrariamente à visão materialista
de apenas valorizar a dimensão
comercial ou econômica, o exemplo de Chirac sugere que é por dispor de brilhante política externa
que a França consegue fazer prevalecer posições comerciais difíceis e isoladas. Hoje, como ontem,
só a diplomacia e a política externa que sabem potencializar ao
máximo o poder sempre limitado
de cada um serão capazes de assegurar resultados propícios no terreno econômico-comercial, e não
o contrário.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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