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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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LUÍS NASSIF

O olhar de minha filha

O colega Luiz Gonzaga Laier me manda uma foto da turma de 1963, do terceiro ginasial dos Maristas. Nela não estava o irmão Nazário, o "Sete Dedos", como o chamávamos. Naqueles dias em que a foto foi tirada, o "Sete Dedos", já idoso, me chamou para conversar depois da aula, me disse que era muito cedo para passar o que estava passando, com uma crise de adolescência braba, e a guerra aberta com meu pai. Guardei para sempre aquela conversa, aquele breve momento de compreensão na longa solidão que marcou minha adolescência.
Com a foto, vejo-me o adolescente trancado no quarto para me proteger do mundo, tendo como únicas companhias o violão e o sonho distante de crescer, de me libertar do julgamento diário, do rosto severo de meu pai, de seu cenho franzido, do ar de censura, dos dias seguidos sem falar comigo. E o desespero de não ter para onde ir, não ter a escolha, não poder abdicar da condição de filho.
É curiosa essa formação da minha geração, que faz com que dezenas de leitores escrevam sobre a coluna "O Olhar do Meu Pai", a maioria absoluta solidária com seu pai, talvez para se iludir acerca da solidão do adolescente que já fomos, enfrentando o poder do adulto que nossos pais eram. Talvez porque muitos de nós passamos a ser o que nossos pais foram e perdemos a sensibilidade para o que nossos filhos são.
Quem se dá ao trabalho de entrar na cabeça de um adolescente, das nossas quase crianças, e perguntar como recebe essa carga diária de cobrança, de competição, essa pressão desmedida para que se diferencie, para que seja "vitorioso", o uso permanente da repreensão e do remorso quando falha? Quem ainda se lembra do que é ser solitário na sua própria casa, porque não se cumpriram os planos que nossos pais nos impuseram?
No final da longa corrida da vida, chegam os que venceram e os que falharam, poucos os que foram felizes. Como me lembro do breve período que antecedeu a entrada na luta, as serenatas, os amigos se valorizando mutuamente, como náufragos procurando a bóia da auto-estima até conseguir colocar o pé fora de casa.
Depois, na universidade, na profissão, tudo passa a ser atropelado pela luta diária, pela obsessão massacrante de não falhar, não desapontar as apostas que fizeram em você. Varrem-se para baixo do tapete sensibilidade, poesia, o próprio culto carinhoso do passado, um processo violento que destrói a tantos pelo caminho, que faz a tantos se refugiar na bebida, na droga ou no trabalho. E aí há a necessidade de perder o medo, de olhar de perto o adolescente que já fomos, e nos vermos nas nossas crianças. Só assim se recomeça.
Por isso, das cartas que recebi sobre "O Olhar do Meu Pai", nenhuma entendeu melhor o sentido do reencontro contido na coluna que o olhar de minha filha Mariana. A coluna a ajudou a compreender os movimentos do pai e a me presentear com uma declaração: "Você acabou por ser o pai que deve ter querido ter".
O que ela não sabe é que a grande noite começou a se desfazer no dia em que ela e a irmã Luizinha, ambas aborrecentes, ambas sofrendo e sem entender o que se passava com o pai, me procuraram, uma de cada vez, e me perguntaram o que eu tinha, por que não falava, por que me fechava tanto. Contaram-me que sabiam como eu estava simplesmente olhando meus olhos, conferindo meu andar nervoso, os tiques da perna, mapeando um a um todos os meus sinais, da mesma maneira que eu fazia com meu pai. E eu nem me dava conta disso.
Aí me lembrei do adolescente que fui, acordei a tempo e venci o grande fantasma que me acompanhava e nos acompanha desde o início da vida adulta, de repetir a sina solitária de nossos pais. A Mariana me escreveu: "Matusa, como as pequenas o chamam, brinca, conta histórias e toca violão sentado no chão da sala, acompanhado pela prole de quatro meninas mais a neta Clara, minha filha. Mariana, Luiza, Beatriz e Dora, todas com nome de música, cada uma com sua melodia".
Como são lindos os pré-adolescentes, os adolescentes, os pós-adolescentes, para sempre nossas crianças.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br

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