São Paulo, quinta-feira, 31 de julho de 2008

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ANÁLISE

Doha deixa Brasil no seu tamanho real

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

A RODADA Doha, recém-lançada à geladeira ou ao cemitério, serviu ao menos para provar de uma vez por todas que o Brasil é maior, bem maior, no jogo das negociações comerciais, do que o magro 1% do comércio mundial que representa, pouco mais ou pouco menos. Mas a lição principal a ser aprendida é que é menor do que pensam alguns membros do atual governo, a começar do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Primeiro, o papel do Brasil tem sido relevante desde o início da rodada, ou seja, desde o seu lançamento na capital do Qatar, faz sete anos.
Quando terminou aquela reunião, todos os jornalistas brasileiros que a acompanhávamos ouvimos o então diretor-geral, Mike Moore, dirigir-se ao chanceler brasileiro da época, Celso Lafer, desafeto do atual governo, para cumprimentá-lo pelos resultados. "Esse homem é um herói", disse Moore, para em seguida chamar Lafer de "godfather", ou padrinho das negociações, claro que sem a conotação mafiosa que se agregou à expressão.
Mais: o então ministro da Saúde, José Serra, e o hoje chanceler, Celso Amorim, então embaixador em trânsito de Genebra para Londres, foram os "padrinhos" de um acordo sobre patentes, vital para políticas públicas dos países em desenvolvimento, dobrando a resistência dos Estados Unidos.
Amorim, brilhante profissional da diplomacia, impressionou tanto Serra que, quando candidato presidencial, o tucano confessou que o escolheria para chanceler, se vencesse. Ou seja, Amorim seria chanceler qualquer que fosse o resultado do pleito de 2002.
Fica claro que a relevância do Brasil não foi uma obra do governo Lula. É uma obra, primeiro, do peso natural do país (tamanho, população, recursos naturais), o que o torna potencialmente grande, ainda que raramente realize seu potencial.
Mas é uma obra também da competência da diplomacia brasileira, universalmente respeitada, neste como em anteriores governos. Um pouco mais neste pelo desempenho de Amorim e de Lula.
Mas há limites que Doha deixou mais claros. Primeiro, para de fato encorpar, o Brasil foi obrigado a associar-se aos grandes emergentes (Índia e China), além de outros menores, para formar o G20.
Só então passou a ter uma voz ainda mais desproporcional ao seu peso no comércio internacional, até porque a China preferiu um perfil baixo, tão baixo que, na maior parte do tempo, ficou invisível.
Este repórter acompanhou todas as reuniões da OMC desde que foi criada, em 1995. Ministeriais, miniministeriais, em grupos pequenos (G4, G6, G20, enfim toda a pletórica coleção de siglas que enfeitam o jogo comercial global). Jamais viu ou ouviu um representante chinês, que só se tornou visível agora em Genebra.

Aliança com problema
A aliança com a China e, principalmente, com a Índia tinha no entanto um problema: os interesses do Brasil em abrir o mercado agrícola do mundo rico não coincidiam com os interesses indianos em proteger seu próprio mercado (e não apenas o agrícola).
Basta lembrar que, em Doha (antes do G20), a Índia atrasou em mais de 12 horas o acordo final que lançou a rodada porque exigia garantias adicionais.
Texto da Folha da época: "Os delegados dos 142 países da instituição chegaram ao salão Al Dafna, do Hotel Sheraton, QG da Conferência, sem saber ao certo se se reuniriam, na sessão de encerramento, para lançar uma nova rodada ou sepultar a credibilidade da OMC.
Afinal, os representantes da Índia resistiam até o minuto final em aceitar a rodada, ou mais exatamente, a inclusão nela dos chamados temas novos (comércio e investimentos, comércio e política de concorrência, transparência em compras governamentais e facilitação de negócios).
A União Européia havia insistido em que tais temas teriam que estar presentes, para que ela pudesse vender ao público interno uma concessão (mais aparente que real na área agrícola)".
Nada, portanto, de essencialmente diferente do que ocorreu agora em Genebra, salvo pelo fato de que os países-membros da OMC passaram a ser 153 -prova, aliás, de que a organização se fortaleceu mesmo nesses sete anos de impasses. O que torna prematuro qualquer atestado de óbito que se pretenda emitir agora.
O Brasil tinha, portanto, a obrigação de saber que, na defesa de seus interesses, a Índia iria até o último limite, mesmo que levasse a negociação ao colapso. Só não o fez em Doha porque os temas caros à Europa foram abandonados e nunca mais voltaram à mesa.
Por que mudaria de tática, se deu certo então e se a Índia só fez crescer explosivamente desde Doha mesmo sem o acordo global? Idêntico raciocínio vale para a China: por que seria menos protecionista se cresceu espetacularmente à sombra do protecionismo?
O Brasil, ao aceitar o pacote lançado audaciosamente pelo diretor-geral da OMC, o francês Pascal Lamy, voltou ao peso que tinha antes do G20, grande porém insuficiente para arrastar na sua guinada as demais "baleias" (Índia e China) e até mamíferos menores, como a Argentina.


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