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ANÁLISE
Doha deixa Brasil no seu tamanho real
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
A RODADA Doha, recém-lançada à geladeira ou
ao cemitério, serviu ao
menos para provar de uma vez
por todas que o Brasil é maior,
bem maior, no jogo das negociações comerciais, do que o
magro 1% do comércio mundial
que representa, pouco mais ou
pouco menos. Mas a lição principal a ser aprendida é que é
menor do que pensam alguns
membros do atual governo, a
começar do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva.
Primeiro, o papel do Brasil
tem sido relevante desde o início da rodada, ou seja, desde o
seu lançamento na capital do
Qatar, faz sete anos.
Quando terminou aquela
reunião, todos os jornalistas
brasileiros que a acompanhávamos ouvimos o então diretor-geral, Mike Moore, dirigir-se ao chanceler brasileiro da
época, Celso Lafer, desafeto do
atual governo, para cumprimentá-lo pelos resultados. "Esse homem é um herói", disse
Moore, para em seguida chamar Lafer de "godfather", ou
padrinho das negociações, claro que sem a conotação mafiosa
que se agregou à expressão.
Mais: o então ministro da
Saúde, José Serra, e o hoje
chanceler, Celso Amorim, então embaixador em trânsito de
Genebra para Londres, foram
os "padrinhos" de um acordo
sobre patentes, vital para políticas públicas dos países em desenvolvimento, dobrando a resistência dos Estados Unidos.
Amorim, brilhante profissional da diplomacia, impressionou tanto Serra que, quando
candidato presidencial, o tucano confessou que o escolheria
para chanceler, se vencesse. Ou
seja, Amorim seria chanceler
qualquer que fosse o resultado
do pleito de 2002.
Fica claro que a relevância do
Brasil não foi uma obra do governo Lula. É uma obra, primeiro, do peso natural do país
(tamanho, população, recursos
naturais), o que o torna potencialmente grande, ainda que raramente realize seu potencial.
Mas é uma obra também da
competência da diplomacia
brasileira, universalmente respeitada, neste como em anteriores governos. Um pouco
mais neste pelo desempenho
de Amorim e de Lula.
Mas há limites que Doha deixou mais claros. Primeiro, para
de fato encorpar, o Brasil foi
obrigado a associar-se aos
grandes emergentes (Índia e
China), além de outros menores, para formar o G20.
Só então passou a ter uma
voz ainda mais desproporcional ao seu peso no comércio internacional, até porque a China
preferiu um perfil baixo, tão
baixo que, na maior parte do
tempo, ficou invisível.
Este repórter acompanhou
todas as reuniões da OMC desde que foi criada, em 1995. Ministeriais, miniministeriais, em
grupos pequenos (G4, G6, G20,
enfim toda a pletórica coleção
de siglas que enfeitam o jogo
comercial global). Jamais viu
ou ouviu um representante chinês, que só se tornou visível
agora em Genebra.
Aliança com problema
A aliança com a China e,
principalmente, com a Índia tinha no entanto um problema:
os interesses do Brasil em abrir
o mercado agrícola do mundo
rico não coincidiam com os interesses indianos em proteger
seu próprio mercado (e não
apenas o agrícola).
Basta lembrar que, em Doha
(antes do G20), a Índia atrasou
em mais de 12 horas o acordo final que lançou a rodada porque
exigia garantias adicionais.
Texto da Folha da época: "Os
delegados dos 142 países da
instituição chegaram ao salão
Al Dafna, do Hotel Sheraton,
QG da Conferência, sem saber
ao certo se se reuniriam, na
sessão de encerramento, para
lançar uma nova rodada ou sepultar a credibilidade da OMC.
Afinal, os representantes da
Índia resistiam até o minuto final em aceitar a rodada, ou
mais exatamente, a inclusão
nela dos chamados temas novos (comércio e investimentos,
comércio e política de concorrência, transparência em compras governamentais e facilitação de negócios).
A União Européia havia insistido em que tais temas teriam que estar presentes, para
que ela pudesse vender ao público interno uma concessão
(mais aparente que real na área
agrícola)".
Nada, portanto, de essencialmente diferente do que ocorreu agora em Genebra, salvo
pelo fato de que os países-membros da OMC passaram a
ser 153 -prova, aliás, de que a
organização se fortaleceu mesmo nesses sete anos de impasses. O que torna prematuro
qualquer atestado de óbito que
se pretenda emitir agora.
O Brasil tinha, portanto, a
obrigação de saber que, na defesa de seus interesses, a Índia
iria até o último limite, mesmo
que levasse a negociação ao colapso. Só não o fez em Doha
porque os temas caros à Europa foram abandonados e nunca
mais voltaram à mesa.
Por que mudaria de tática, se
deu certo então e se a Índia só
fez crescer explosivamente
desde Doha mesmo sem o
acordo global? Idêntico raciocínio vale para a China: por que
seria menos protecionista se
cresceu espetacularmente à
sombra do protecionismo?
O Brasil, ao aceitar o pacote
lançado audaciosamente pelo
diretor-geral da OMC, o francês Pascal Lamy, voltou ao peso que tinha antes do G20,
grande porém insuficiente para arrastar na sua guinada as
demais "baleias" (Índia e China) e até mamíferos menores,
como a Argentina.
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