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VISÃO EXTERNA
Robert Brenner, professor de história econômica, diz que país deveria decretar moratória e critica novo governo
Para especialista, política de Lula é "suicida"
MARCOS MACEDO CINTRA
DA EQUIPE DE EDITORIALISTAS
A política econômica implementada pelo governo Lula é
"suicida". Se o Brasil entrasse em
moratória, suas relações com o
capital financeiro internacional
provavelmente se tornariam
"mais saudáveis".
Essas são algumas das idéias defendidas em entrevista à Folha
por Robert Brenner, professor de
história econômica da Universidade da Califórnia (EUA).
Para ele, Lula responde ao "legado de dívida e fragilidade externa" do governo FHC, aprofundando o seu programa. Sobre as
reformas institucionais que estão
na agenda petista, Brenner também é cáustico: "Parecem ser ainda mais autodestrutivas do que
sua política macroeconômica".
Outra nota pessimista do estudioso, que dirige o Centro de Teoria Social e História Comparada
de sua universidade, é sobre o fôlego da recuperação dos EUA.
O historiador publicou neste
ano no Brasil "O Boom e a Bolha"
(Editora Record), que o consolidou no debate contemporâneo
sobre a economia mundial.
Folha - Até que ponto os estímulos do Fed (o banco central dos
EUA) e do governo Bush conseguiram reanimar a economia?
Robert Brenner - Desde o início
da retração cíclica, no final de
2000, as autoridades americanas
puseram em marcha estímulos
econômicos sem precedente. O
Fed baixou os juros em 5,5 pontos
percentuais. O governo reduziu
impostos e fez deslanchar os gastos militares. Com isso, o setor
público saiu de um superávit fiscal de 1,4% do PIB em 2000 para
um déficit superior a 4% em 2003.
Até o momento, esse impulso
recorde trouxe pouco dinamismo. O investimento, a variável-chave da saúde econômica, continua a decair: o gasto com novas
fábricas e equipamentos na primeira metade de 2003 caiu 12%
abaixo do nível de 2000.
A intervenção do governo teve
resultados desalentadores porque
foi incapaz de responder aos problemas fundamentais: sobrecapacidade produtiva, baixa lucratividade na indústria e endividamento corporativo recorde.
O gasto dos consumidores, virtualmente sozinho, liderou a economia. Mas o crescimento dos
dispêndios dos consumidores depende de uma inédita elevação do
endividamento das famílias, que
em sua maior parte se faz contra o
mercado de ativos hipotecários.
Folha - A retomada do crescimento americano é sustentável?
Brenner - Mesmo se uma aceleração significativa da atividade
econômica se materializar, a sua
sustentabilidade é incerta, pois
dependerá dos mecanismos
-expansão das dívidas das famílias e inflação de bolhas financeiras- que sustentam a economia
americana desde o final de 2000.
Graças às últimas reduções de
juros pelo Fed, o preço das ações
inflou nos últimos meses. O mercado em alta desempenha papel
relevante na melhora do clima financeiro. Porém os preços das
ações estão aumentando acima
dos lucros. Em junho, a relação
preço/lucro da S&P 500 [que reúne as 500 maiores empresas americanas] alcançou 33 para 1, quando a média histórica é de 14 para 1.
Enquanto o valor das ações caiu
US$ 6 trilhões entre 2000 e 2002, o
estoque de imóveis expandiu
US$ 3 trilhões. Isso gerou um
"efeito-riqueza" análogo ao proporcionado pela valorização das
ações entre 1995 e 2000. Em 2002,
as famílias "extraíram" a soma de
US$ 700 bilhões de seus imóveis
[através do refinanciamento de
hipotecas e garantia em empréstimos], o que foi indispensável para
manter o consumo. Mas parece
improvável que os preços dos
imóveis possam continuar aumentando como nos últimos cinco anos ou que as taxas das hipotecas mantenham-se tão baixas.
Por causa do estímulo público,
ao americano foi permitido manter seus gastos mesmo na retração
cíclica, enquanto o resto do mundo foi obrigado a reduzi-los.
Até agora, os governos da Ásia
têm ajudado a manter o dólar valorizado a fim de permitir o crescimento de suas exportações.
Folha - Os EUA serão capazes de
liderar uma nova onda de crescimento mundial?
Brenner - Paradoxalmente, o
crescimento da economia mundial requer a deterioração dos desequilíbrios: o aumento do déficit
em conta corrente dos EUA e do
superávit das economias asiáticas
e européias. Esse é o resultado de
um quarto de século de austeridade econômica e abertura dos mercados de bens e de capitais, de
acordo com o neoliberalismo.
A redução das taxas de crescimento das economias domésticas
tornou a maioria das nações dependente de suas exportações e,
portanto, do contínuo crescimento das importações americanas.
Os capitais, que estão fluindo
para os ativos americanos para
cobrir o explosivo déficit externo
e manter o valor do dólar, nutrirá,
direta ou indiretamente, as bolhas
de ações, de imóveis e de títulos.
Folha - Quais as perspectivas da
recuperação dos emergentes?
Brenner - Graças à abertura aos
fluxos financeiros globais, economias como a brasileira precisam
ancorar seu crescimento na entrada de capitais estrangeiros. Entretanto essas economias têm limitada capacidade de atrair capital.
São as economias centrais que determinam a demanda e a oferta de
capitais em escala global.
As baixas taxas de juros nos países desenvolvidos estão levando
os investidores a tomar posições
mais arriscadas. Isso está impulsionando o fluxo de capitais para
a periferia e promovendo um surto de crescimento, exatamente
como na primeira mania dos
"mercados emergentes" no início
dos anos 90. É improvável que isso continue por muito tempo.
Se a expansão americana ganhar vigor, os mercados acionários se valorizarão e as taxas de juros, provavelmente, se tornarão
bem mais altas, o que já pode estar acontecendo. Tais eventos exigirão dos países em desenvolvimento taxas de juros mais altas,
salários mais baixos, cortes mais
profundos no consumo, maiores
superávits fiscais e venda de ativos nacionais a preços aviltantes a
fim de manter o fluxo de capitais.
Se a recuperação americana não
ocorrer, os países desenvolvidos
continuarão patinando e podem-se esperar recessões ainda mais
graves na periferia.
Isso sem considerar que os países em desenvolvimento "neoliberalizados" continuam muito
vulneráveis às devastações produzidas pelas imprevisíveis, mas
cada vez mais comuns crises financeiras internacionais.
Folha - O que pensa da política
macroeconômica do governo Lula?
Brenner - Essas políticas macroeconômicas hiperausteras do
atual governo brasileiro representam uma continuação das desastrosas políticas neoliberais da gestão de Fernando Henrique Cardoso. Elas respondem ao legado
de dívida e vulnerabilidade externa de FHC, aprofundando ainda
mais o seu programa.
Mas a devastadora contradição
dessa abordagem é clara. A fim de
atrair investimento estrangeiro
direto e capital de curto prazo, o
Brasil tem de adotar a política que
favorece os mercados financeiros
internacionais e o FMI [Fundo
Monetário Internacional]: superávits fiscais para pagar juros da
dívida pública, taxas de juros altíssimas para debelar a inflação.
Tais políticas operam contra os
requisitos do crescimento econômico. Deprimem o gasto privado
em novas fábricas e equipamentos e o dispêndio público em infra-estrutura, pesquisa científica,
serviços sociais etc. Diante disso,
o mercado doméstico pode, na
melhor das hipóteses, estagnar.
É pouco surpreendente que tais
políticas, durante os anos 90, tenham propiciado reduzida melhora nos padrões de vida, declínio na taxa de investimento, colapso na balança comercial e na
conta corrente e aumento do endividamento público e externo.
Tampouco surpreende que hoje
a acumulação de capital no Brasil
virtualmente inexista, que o desemprego seja maior que sob
FHC, que o salário continue a cair
e que a indústria tenha estagnado.
Sob tais condições, o capital externo entra no Brasil para explorar os juros altos ou para adquirir
empresas a baixos preços, e não
para investir na produção. Não é
fácil compreender como o governo brasileiro pode persistir nessa
macroeconomia suicida.
Folha - O que constrangeria o governo Lula a implementar política
macroeconômica mais conservadora que a de FHC? Há alternativa?
Brenner - O que compele o governo Lula a ser ainda mais conservador é o seu compromisso
com os mercados financeiros internacionais e o consequente pagamento da dívida brasileira nos
termos impostos pelo FMI.
A preocupação pode ser resumida da seguinte forma: se o Brasil repudiar esses compromissos,
a punição dos investidores -o fechamento dos fluxos de capital-
tornará a vida no Brasil ainda
mais difícil do que é atualmente.
Economistas de todas as tendências compreendem que a única política viável nas condições
recessivas vigentes seria estimular
a demanda agregada mediante o
aumento do gasto público e da
queda das taxas de juros. Mas no
Brasil assiste-se ao lamentável espetáculo de um governo respondendo a uma depressão profunda
com políticas destinadas a contrair ainda mais a economia.
O governo brasileiro está em
posição de renegociar os termos
de sua dívida com o FMI. Ainda
que o Brasil fosse levado à moratória, as suas relações com o capital internacional provavelmente
se tornariam mais saudáveis.
Em 1998, quando o Brasil começou a aceitar condições onerosas
impostas pelo Fundo, a Rússia entrou em moratória. Desde então, a
economia russa vem melhorando, com um grande influxo de investimento estrangeiro direto.
Folha - O sr. defende a adoção de
controles de capital?
Brenner - Reintroduzir controles
de capitais é condição mínima para a retomada do crescimento
brasileiro. Sem esses mecanismos, os capitais deixarão o país ao
menor sinal de instabilidade financeira doméstica ou do surgimento de melhores perspectivas
no exterior. Pior ainda, o dinheiro
estrangeiro sairá ao menor sinal
de desenvolvimentos políticos
progressistas, como ocorreu nos
três meses que antecederam a ascensão de Lula à Presidência.
A despeito da pressão dos EUA
e do capital internacional, China,
Taiwan e Cingapura mantiveram
controles de capital ao longo dos
anos 90. Esses países não apenas
atravessaram a crise asiática relativamente intactos, mas continuaram a atrair grandes volumes
de investimento estrangeiro.
Folha - Como o sr. vê a eleição de
Lula?
Brenner - Talvez para a maioria
dos eleitores de Lula, a questão
principal fosse romper com o
neoliberalismo e começar a enfrentar as injustiças sociais. Porém o governo Lula embarcou
numa transição -que prepara o
terreno para reformas sociais-,
adotando política econômica e
propondo mudanças institucionais em consonância com o FMI.
Pode-se ponderar, entretanto,
se a implementação dessa política
econômica não tornará mais difíceis as reformas sociais. As mudanças institucionais que o governo Lula espera introduzir parecem ser ainda mais autodestrutivas do que sua política macroeconômica. Parecem destinadas a enfraquecer politicamente a classe
trabalhadora e os pobres, nos
quais o governo terá de ancorar-se se quiser levar adiante suas reformas sociais contra a oposição
do capital, dos privilegiados e dos
meios de comunicação de massa.
Conceder autonomia ao BC fortalecerá os laços com o setor financeiro e com o neoliberalismo.
O ataque às aposentadorias, supostamente para eliminar desigualdades, na prática, reduz benefícios dos servidores públicos,
deixando-os mais vulneráveis.
O que é necessário, ao contrário, é ampliar esses benefícios e
estendê-los a outros ramos de trabalhadores, a fim de aumentar a
sua influência econômica e política. A propalada "modernização"
dos sindicatos tem por princípio
aumentar a "flexibilidade da força
de trabalho". Mas isso pode apenas reduzir a capacidade dos trabalhadores de defender-se.
O governo Lula tenta conter as
mobilizações de massa para não
assustar o capital internacional.
Porém, a menos que essas mobilizações se intensifiquem, a esperança por reformas sociais substanciais se tornará uma quimera.
Lula e seu governo oferecem
poucas evidências de que querem
incentivar essa luta por reformas
sociais. Após tantos anos denunciando FHC por capitular à dependência e por acomodar-se ao
"status quo", eles certamente devem algumas explicações.
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