São Paulo, terça-feira, 18 de outubro de 2011 |
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OUTRAS IDEIAS MICHAEL KEPP - mkepp@terra.com.br
Fico te devendo
Deixar de assumir a responsabilidade pelos próprios atos e compromissos é uma falha universal. Mas, no Brasil que eu amo, essas esquivas são tão corriqueiras e escorregadias que mostram como esse povo institucionalizou e aperfeiçoou o truque de tirar o corpo fora. Os brasileiros são craques em transferir a culpa. Veja uma manchete do "Globo": "Estradas nunca mataram tanto quanto neste Carnaval". Responsabilizar as rodovias absolve os motoristas imprudentes e o governo, que não as recapeou. Uma vez, um amigo que chegou tarde a um encontro colocou a culpa no transporte público: "Não atrasei. Foi o ônibus que demorou a passar". E, quando lembrei meu enteado, pianista, que eu ainda não recebera o presente -um pequeno tambor- que ele me trouxera de sua turnê africana, ele me falou que decidira ficar com o instrumento, dizendo: "Dançou". Os brasileiros são capazes de antropomorfizar qualquer objeto para culpá-lo de uma falha humana, às vezes no interesse de cordialidade ou de suavizar a situação. Uma vez, na São Paulo Fashion Week, o assistente de uma "stylist", ao entregar um vestido sem o cinto no camarim da modelo, explicou: "O cinto não veio". E um funcionário de um mercado driblou o deslize de não ter estocado papel higiênico, produto essencial, contemporizando: "Tem... Mas está em falta". Diante da imprensa, um tira que "efetuou disparos" contra a vítima desarmada transfere sua culpa com frases como "foi uma fatalidade", "o elemento faleceu" ou, pior ainda, "entrou em óbito". Tradução: "Deus tirou-lhe a vida; eu só fiz os furos". Um locutor de futebol explica por que seu jogador preferido chutou a bola para fora: "O campo estreitou" ou "O campo acabou". Se seu time perde, anuncia que "deixou de ganhar". Brasileiros usam os dribles mais inventivos para se esquivar de acusações e compromissos. "Imagina!" refuta uma acusação verdadeira ou falsa. "Sumiu!" transfere o peso do sumiço para o outro. E "Houve um desencontro!" é o álibi que alguém usa quando foi ela quem deu o bolo. Se alguém que acabei de contratar me dá como prazo "deixa comigo" e o prorroga com "um dia desses", eu me resguardo com uma frase que começa com "é o seguinte...", prossegue com "não deu" e acaba com "fico te devendo", que, como "fica para a próxima", empurra qualquer compromisso para o dia de são Nunca. MICHAEL KEPP, jornalista americano radicado há 28 anos no Brasil, é autor do livro "Tropeços nos Trópicos - crônicas de um gringo brasileiro" (editora Record); www.michaelkepp.com.br Próximo Texto: Tudo em três tempos Índice | Comunicar Erros |
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