|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ORIGENS
Mil graus na terra da garoa
São Paulo é ser "nóis vai", mesmo quando a gente não for. É falar errado, mas agir correto. É curtir o sol mesmo quando ele não vem
SÉRGIO VAZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
São Paulo é uma cidade no
cio. Por isso, transa com todo
mundo e em todos os lugares. É
bonita porque é feia, e como toda feia que se preza, beija mais
gostoso. Que os Vinicius me
perdoem, mas feiúra é fundamental.
Do alto do prédio ou na superfície da alvenaria, a cidade
dói nos olhos dos inocentes que
transitam nas calçadas. De onde eu a vejo, minhas retinas são
seletas e, de como eu a vejo, as
esquinas são espertas.
A cidade de São Paulo, que
está no mapa, não é toda daquele tamanho, muita gente já
tirou um pedaço, que faz muita
falta na mesa do jantar, ou depositou em conta corrente, que
nada contra a corrente, de
quem ama esse lugar.
Essa maçã mordida que a
massa não come, constrói o luxo que alimenta o lixo escondido debaixo do tapete. Essa cidade não é minha e não devia
ser de ninguém, mas ela existe,
e todo ano faz aniversário.
Longe do estupro a céu aberto eu costuro meu poema sobre
a torre de babel, que samba o
rock triste, deste carnaval de
concreto e de garrafas fincadas
no chão.
O cartão-postal do meu coração não despreza o centro nem
esconde a periferia.
São Paulo pra mim é pagode
com feijoada nos botecos que
brotam nas ladeiras. É samba
da vela, elétrico nos trilhos de
santo Amaro até o samba da
hora atrás da batina da Igreja
da Estrada do M'Boi Mirim.
É ser Rap Soul funk ou metal
de primeira. E segura o Peão
que corre a cavalo na pista dos
bares de Interlagos onde a Primavera começa toda sexta.
É cantar de galo nas Rinha
dos Mcs no Grajaú onde o Criolo Doido não tem nada de louco. É sarau da Cooperifa no quilombo do Jardim Guarujá, onde a poesia nasce das ruas sem
asfalto, em plena quarta-feira...
a literatura do morro arranhando os céus da cidade. Ô povo lindo, ô povo inteligente!
É comprar livros nos sebos e
ensebar nos bancos da praça ou
do metrô, até o Jabaquara. É ler
Brasil de fato com os caros amigos dos Becos e vielas dentro do
ônibus ou na fila de espera. É
ser Um da sul e ser 100% favela,
e se é por ela, deixa a bússola te
levar.
É assistir a Glauber Rocha no
cine Becos que é cinema novo
para galera do Jardim Ângela,
que é truta do jardim Ranieri.
Ou dançar samba de côco no
Panelafro, onde Zumbi impera
no largo de Piraporinha.
É jogar futsal nas quadras das
escolas públicas, quase abandonadas pelo alfabeto.
É conspirar a favor, tomando
cerveja gelada no bar do Zé Batidão. É Carolina de Jesus de
Jéferson De, saindo da tela. É
as mina de vestidinho e chinelo
de dedo no churrasco em cima
da laje.
É comer pipoca sem pipoco
na quermesse da Vila Fundão,
no coração do Capão.
É a rapaziada nos campos de
várzea de canela em punho
maltratando a bola ou sendo
maltratada por ela.
É Poesia do Binho no Campo
Limpo, pra se livrar das sujeiras.
É ser preto ou branco, tanto
faz, mas principalmente verde,
que é a esperança da paz.
É o ensaio da Vai-Vai e das
outras escolas unidas do morro. É Amado batista no Vila Sofia, à capela, no Socorro a caminho da represa de Guarapiranga. É comer peixe na barraca do
Saldanha.
É Levar os espinhos na Casa
das rosas para colher cravos e
margaridas que nasce no Jardim das Rosas.
É não ouvir cd pirata nem
original, quando o mesmo for
caro. É ser enquadrado somente pelas lentes do Marcelo Min,
QSL?
É ser "nóis vai", mesmo
quando a gente não for. É Falar
errado, mas agir correto. É curtir o sol mesmo quando ele não
vem -e encontrar sempre as
mesmas pessoas no muro das
lamentações.
É empinar pipa nos dias sem
vento. É viver mil fitas e ser mil
graus na terra da garoa. Enfim,
São Paulo é isso, mas também
tem outros lugares.
SÉRGIO VAZ é escritor e autor do blog
www.colecionadordepedras.blogspot.com
Texto Anterior: Extremo sul em números: Região é a que mais tem gatos de estimação Próximo Texto: Frase Índice
|