|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A HIPERPOTÊNCIA
Apesar de o sucesso inicial da ofensiva militar contra o regime do Taleban
e contra a rede terrorista Al Qaeda, no Afeganistão, sugerir que o poder americano seja algo inigualável atualmente, Joseph Nye, um dos papas do estudo das relações internacionais e autor de
dezenas de livros e artigos sobre o tema, crê que o agravamento do unilateralismo dos EUA abale
sua influência sobre o restante do planeta, o que reduz o alcance de seu poder internacional
"Unilateralismo enfraquece EUA"
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
O unilateralismo dos EUA, intensificado após 11 de setembro,
mina sua influência cultural e
ideológica sobre o restante do planeta, reduzindo seu poder global.
A análise é de Joseph Nye, reitor
da Kennedy School of Government da Universidade Harvard
(EUA), que foi consultor do Departamento de Estado e presidente do Conselho de Segurança Nacional dos EUA. Leia a seguir trechos de sua entrevista à Folha.
Folha - Os EUA são mais poderosos hoje, pois podem demonstrar
mais explicitamente seu poder?
Joseph Nye - Uma reputação de
poder cria poder. Assim, o sucesso do poder militar americano
durante a ofensiva inicial no Afeganistão -país antes classificado
de cemitério de Exércitos invasores- acentua o poder do país.
Contudo o poder é composto
por muito mais do que só a força
militar. A vulnerabilidade a um
ataque terrorista transnacional,
como a que os EUA conhecem
desde 11 de setembro último, não
pode ser dissipada apenas por
meio do uso do poder militar.
A prevenção de novos atentados requer uma estreita cooperação com outros países em áreas
eminentemente civis. Isso depende, em parte, do poder de atração,
do "soft power" [a força internacional de um país que advém de
sua influência cultural e ideológica sobre o restante do planeta]
dos EUA. E o unilateralismo americano, intensificado após os ataques, mina seu "soft power", diminuindo seu poder global.
Folha - Para o professor Stanley
Hoffmann, os EUA estão diante de
um novo desafio. De um lado, o
país sofre a tentação de lançar-se
numa cruzada unilateral na cena
internacional. Por outro lado, a alternativa seria não se proteger das
novas ameaças. Como Washington
pode resolver esse dilema?
Nye - Hoffmann tem razão no
que concerne à análise do problema, já que esse dilema realmente
existe. Sua solução requer uma
combinação de "hard power" [a
utilização de instrumentos militares e econômicos para coagir outros atores políticos, econômicos
ou sociais a fazer o que eles não
querem] com "soft power".
Na guerra ao terrorismo, o poder militar foi necessário para pôr
fim ao regime do Taleban, que dava abrigo e proteção à Al Qaeda
[rede terrorista de Osama bin Laden] no Afeganistão. Todavia ele
não foi suficientemente eficaz para acabar com a Al Qaeda, que é
uma organização internacional
com células em cerca de 50 países.
Isso requer uma intensa troca
de informações, um trabalho policial sem fronteiras, uma estreita
cooperação entre autoridades alfandegárias de inúmeros Estados
e a localização e o sufocamento
dos fluxos financeiros que bancam atos terroristas.
Folha - Alguns analistas argumentam que os aspectos do poder
americano são tão variáveis e tão
duráveis que o país goza hoje de
mais liberdade na concepção de
sua política externa do que qualquer outra potência da história
moderna. Porém o sr. sustenta que
"a única superpotência do mundo
não pode agir sozinha". Como explicar essa aparente contradição?
Nye - Em parte, os analistas têm
razão. Como argumento em meu
último livro, "The Paradox of
American Power" [o paradoxo do
poder americano], é difícil imaginar que algum país possa substituir os EUA no campo do poder
militar nas próximas décadas.
Contudo o que não está correto
nessa análise é que ela pressupõe
que essa unipolaridade militar
signifique que os EUA podem obter os resultados que desejam em
todas as áreas. Para mim, o poder
é, atualmente, algo como um jogo
de xadrez tridimensional.
No tabuleiro mais elevado, o do
poder militar, o mundo é unipolar e deverá permanecer assim
durante muito tempo. No tabuleiro do meio, o do poder econômico, o mundo é multipolar, pois o
poder econômico europeu pode
equiparar-se ao americano. No
tabuleiro de baixo, o das relações
transnacionais que ignoram fronteiras e fogem ao controle dos governos, no qual há o terrorismo,
não faz sentido falar em unipolaridade ou em multipolaridade.
Trata-se de um novo desafio.
No último tabuleiro, a estrutura
de poder é caótica, o que obriga os
governos, incluindo o dos EUA, a
cooperar entre si. Se não o fizerem, não conseguirão enfrentar
os desafios existentes nessa esfera.
Folha - O sr. crê que a teoria do
"choque de civilizações", descrita
pelo professor Samuel Huntington,
que foi popularizada após 11 de setembro, possa tornar-se realidade?
Nye - Não vejo o que ocorreu em
11 de setembro último como uma
prova do choque de civilizações.
Creio que seja exatamente isso
que Osama bin Laden queria
quando planejou os atentados.
Porém, por enquanto, o Ocidente
ainda não caiu nessa armadilha.
Seria mais apropriado classificar os ataques terroristas aos EUA
de uma guerra civil dentro do islã,
que opõe os moderados aos extremistas, como Bin Laden. Se os
EUA tivessem ficado atolados no
Afeganistão, como ocorreu com
os soviéticos na década de 80, talvez os extremistas obtivessem
uma fonte contínua de força.
Devemos tomar muito cuidado
com esse tipo de questão. Afinal, é
crucial entender a diferença existente entre os muçulmanos moderados e os extremistas. Não podemos permitir que a idéia do
choque de civilizações se torne
uma profecia que se auto-realiza.
Folha - Redes terroristas são, portanto, um tipo perverso de globalização, já que, desde os atentados
aos EUA, descobrimos que elas são
financiadas globalmente e possuem a capacidade de realizar ataques fora de seu "território"?
Nye - Como argumento em meu
livro mais recente, as redes terroristas fazem parte da globalização.
É importante perceber que a globalização tem aspectos tanto positivos quanto negativos.
Às vezes, os economistas tendem a dizer que a globalização é
um fenômeno puramente econômico e benéfico. Todavia ela também inclui dimensões militares,
sociais e ambientais. O terrorismo
transnacional, como a disseminação de doenças infecciosas ou a
mudança global do clima, é uma
das faces nefastas da globalização.
Texto Anterior: Nova doutrina: Bush se reinventou após ataques Próximo Texto: Geopolítica: Discurso multilateralista dura pouco Índice
|