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ORIGENS
Epitáfio para um bar sem nome
Descobri o lugar logo que cheguei na Vila Mariana, em meados dos anos 80; ao voltar para casa, batia ponto ali,
com a desculpa de espairecer
MARÇAL AQUINO
ESPECIAL PARA A FOLHA
METADE DO povo que
freqüentava aquele
bar já tinha vivido algum tipo de contrariedade com
a lei. E intimações variadas estavam a caminho para a outra
metade. Um bar sem nome. E
sem portas. Um porto inseguro.
Covil.
Descobri o lugar logo que
cheguei na Vila Mariana, em
meados dos anos 80. Eu trabalhava como revisor até de madrugada e, ao voltar para casa,
depois do tenso e intenso embate com as páginas de editoriais do jornal, batia ponto ali,
com a desculpa de espairecer.
Me interessava a fauna, na verdade flora -intestinal. (Um
tempo muito feliz, embora, na
época, como sempre acontece,
eu ainda não soubesse disso.
Todos ainda estavam vivos: Vera, Lalucha, Itamar, Dudu, Flavinha. Eu ia quase toda tarde ao
cinema. E escrevia, com fúria
de autor impúbere e fé de peregrino, o que achava que seria
meu primeiro romance. Engano: depois de pronto, cortei o
texto com tamanho rigor que o
reduzi a uma epígrafe, se tanto.
Memória é tudo aquilo que nos
parece que aconteceu.)
O bar não era mais do que um
corredor comprido e estreito,
que as banquetas coladas ao
balcão de fórmica encardida
tornavam ainda mais apertado.
Prateleiras com garrafas empoeiradas, imagem de São Jorge no nicho, vidros com salsichas em conserva e ovo colorido, estufa onde boiavam no
óleo lingüiças tão suspeitas
quanto os clientes. As portas do
bar tinham sido removidas; o
dono se gabava de nunca ter fechado o recinto, nem na Sexta-Feira Santa -"nem mesmo no
dia em que mãinha partiu".
A única porta que sobrou ficava no fim do corredor e conduzia a um inesperado galpão
nos fundos do bar, onde ficavam os banheiros imundos, uns
bancos de madeira com juras
de morte riscadas a estilete e
um conjunto de impecáveis
mesas de bilhar.
Ali se esbarravam todos os
dias os personagens de um
imenso compêndio de causas
perdidas. Homens que se escondiam do mundo, mulheres
desenganadas pela esperança.
No meio, malandros de diversos calibres, boêmios de cabelo
acaju, otários desavisados, turistas da meia-noite, poetas
trêmulos, ex-presidiários insones. Um ambiente em que até
as almas fediam a tabaco. Em
algumas noites, a PM baixava
de escopeta e encostava esse
povo todo na parede para uma
revista de rotina. Apreendiam
coisa de pouca monta: facas, canivetes, um 38 raspado, umas
ampolas, um e outro baseado.
Numa ocasião, passaram para
buscar um pernambucano espigado, bom de briga e de sinuca. Pensão alimentícia. De taco
na mão, ele pediu licença para
terminar a partida antes de ir.
Um tenentinho invocado que
comandava a ação considerou
por uns segundos antes de concordar, para alívio geral. A
maioria ainda se lembrava do
episódio em que aquele pernambucano havia se atracado
com meia dúzia de gambés, que
tentavam prendê-lo pela mesma infração alimentar.
Meu interlocutor favorito
era um médico recém-formado, que aparecia depois de dar
plantão no pronto-socorro
mais hostil da zona sul. Como
eu, viera do interior, para onde
pretendia voltar depois de concluir a especialização. Contava
ocorrências assombrosas do
PS, que chocavam até mesmo
as almas calejadas do bilhar. Eu
era um dos poucos que sabia de
seu romance com uma velha
mariposa que circulava sempre
por ali. Michele, alcoólatra, se
dizia filha ilegítima de um famoso jogador de bilhar. Havia
afeto entre ela e o meu amigo,
mas era "o tipo de amor que não
pode dar certo na luz da manhã", no dizer de Caetano. Ele
voltou pro interior, casou, criou
barriga e filhos. Pelo que sei, ela
está enterrada no cemitério da
Vila Mariana - tomou formicida num dia primeiro de ano.
Li a notícia no jornal outro
dia.
O bar já não existe mais.
Ruiu na explosão de um botijão de gás.
Em seu lugar, funciona hoje
um estacionamento.
Não fecha, dia e noite.
Alguém pode dizer: numa
homenagem àquele bar.
MARÇAL AQUINO é jornalista, escritor e roteirista de cinema.
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