|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RUY CASTRO
Escalado na marra?
VOCÊ conhece a lenda:
inconformados com a
pouca produtividade
do time do Brasil nas duas primeiras partidas e tendo pela
frente o temido jogo contra a
URSS, uma comissão de jogadores (Didi, o mais importante,
Nilton Santos, o mais velho, e
Bellini, o capitão) teria ido a Vicente Feola pedir a entrada de
Garrincha. Sem ele, diriam, não
nos classificaríamos.
Essa também é a história que
comecei a ouvir um ou dois
anos depois da Copa. Apesar de
ter acompanhado aquele Mundial por todos os veículos então
disponíveis, não me lembro de
que, durante a Copa, ou logo
depois, se falasse no assunto. A
revista "Manchete Esportiva",
por exemplo, cujos enviados
-o repórter Ney Bianchi e o fotógrafo Jader Neves- eram
amigos de vários jogadores, jamais tocou no assunto.
Mas foi o que passou para a
história. Didi, Nilton Santos e
Bellini pediram a escalação de
Garrincha. Não se sabe se exigiram outras alterações, mas isso
foi insinuado. O fato é que, para
o jogo contra a URSS, Feola escalou também Pelé, já recuperado de uma contusão (barrou
o palmeirense Mazola), e escalou o vascaíno Vavá. E trocou
ainda o volante são-paulino Dino pelo santista Zito. Com essas alterações, o Brasil teria encontrado sua formação ideal e
destruído os russos.
Comecei a desconfiar de que
algo não batia nessa história
quando, em São Paulo, nos
anos 80, descobri que a mesma
história circulava, só que com
Zito no lugar de Bellini. Quer
dizer que Zito teria ido pedir a
Feola que o escalasse no lugar
de Dino? Mas não é notório que
aquela seleção era considerada
um modelo de organização e
disciplina, e só por isso foi campeã do mundo? Quando um
grupo de jogadores vai ao treinador e impõe a escalação de
um ou de outro -e a conseqüente barração de outros tantos-, como fica o clima?
De 1993 a 1995, quando trabalhei na apuração de meu livro "Estrela Solitária - Um Brasileiro Chamado Garrincha",
pude mergulhar fundo nesse
quesito. A primeira providência foi falar com os três protagonistas: Didi, Bellini e Nilton
Santos. Todos negaram que a
história tivesse acontecido, e
ainda apresentaram bons argumentos. "Feola não era bobo
como pensavam", disse Didi.
Bellini foi ainda mais direto:
"Imagine se algum de nós se
atreveria a passar por cima de
seu Feola e, pior ainda, de seu
Carlos Nascimento [o severo
supervisor da seleção e verdadeiro chefe da delegação]. Seria
um desrespeito. Eram homens
muito mais velhos, não tínhamos essa liberdade". E Bellini
deu outro argumento definitivo: "Joel era querido por todos.
E o Flamengo tinha mais três
jogadores na seleção: Moacir,
Dida e Zagallo. O ambiente ficaria horrível se os jogadores
conspirassem uns contra os outros". E, finalmente, Nilton
Santos também desmentiu:
"Seu Carlos Nascimento nunca
deixaria isso acontecer. Ele era
fogo na roupa!". Quando perguntei a Nilton por que ele próprio ratificara tantas vezes a
lenda, deu a entender que falara por falar (e, a partir daí, passou a desmentir a história).
Fui conversar também com
Joel, que, em 1994, trabalhava
na peneira do Flamengo. Era a
primeira vez que um jornalista
ou escritor lhe perguntava sobre sua substituição por Garrincha em 1958. Para Joel, fora
uma coisa natural. Tinha sido
quebrado pelo lateral inglês no
jogo anterior e estava sem condições de jogo. Garrincha entrara em seu lugar e "acabara
com a festa" -ele, Joel, era
grande fã do ponta do Botafogo.
Nada de anormal na sua substituição, nenhum trauma, nenhum rancor de sua parte.
Finalmente, o preparador físico Paulo Amaral, o tesoureiro
Adolpho Marques, o treinador
Zezé Moreira e outros jogadores daquela época (Gilmar,
Djalma Santos, Orlando, Zagallo, Julinho Botelho, Jordan,
Pampollini, Sabará, Altair, Neivaldo), todos enfatizaram a impossibilidade de um grupo impor escalações sem quebrar a
harmonia. E as inúmeras fotos
de Joel, abraçado a um suado
Garrincha no vestiário, após cada vitória, provam que essa
harmonia nunca se quebrou.
Para completar, o Brasil entrou tranqüilo contra a URSS
(bastava-lhe um empate). Feola já podia escalar seu time mais
ofensivo -o que envolvia, naturalmente, Garrincha. "Mas até
isso estava previsto", disse-me
Paulo Amaral. "Guardamos
Garrincha de propósito sabendo que, a partir dali, precisaríamos atacar com tudo."
Por fim, perguntei a meu velho colega de "Manchete" Ney
Bianchi, íntimo de Didi, de onde saíra a lenda de que Garrincha fora escalado na marra:
"Futrica da imprensa botafoguense", ele riu.
Texto Anterior: Mito ou verdade? Próximo Texto: Copa 1958: O herói mora ao lado Índice
|