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VOZ DO MORADOR
Dona de galeria fez a vida nos Jardins
Célia Dias, que faz ginástica assistindo ao trânsito na Lorena, relembra as memórias do local onde vive há 60 anos
Karime Xavier/Folha Imagem
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Célia Dias, dona de galeria e moradora do Jardim Paulistano
WILLIAN VIEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL
Acontece toda manhã de sol.
Enquanto faz exercícios na janela de seu apartamento no 11º
andar de um prédio antigo na
rua Dr. Melo Alves, no Jardim
Paulista, Célia Maria Strasburg
Gomes Dias, 79, observa o semáforo lá embaixo, na esquina
da alameda Lorena. Calculando
o quanto ele fica aberto pelo
tempo das posições de ginástica, ela afirma, categórica, que a
rua com menor fluxo tem sinal
verde por mais tempo.
"O resultado é que a Lorena
vive lotada", diz, as mãos espalmadas. "Já reclamei, mas não
fizeram nada. Assim, vou fazendo a minha ginástica e vendo esse absurdo." Se ela insiste
na vigília é por crer que "o problema do bairro é o trânsito"
-ela e 27% dos moradores da
região entre as avenidas Paulista, Rebouças, Brigadeiro Luís
Antônio e rua Estados Unidos,
que formam o Jardim Paulista.
É lá que ela tem dirigido nos
últimos 60 anos, "e graças a
Deus muito bem, bastante e
sem óculos", desde o tempo em
que as ruas eram de paralelepípedo e ela estacionava o carro
na porta de casa -a terceira de
uma vila na esquina da rua da
Consolação com a Oscar Freire.
A pé, sacola em punho, ela ia
comprar carne no açougue, e
arroz e feijão no empório (que
mais tarde seria, conta, o célebre bar Supremo, que atraía a
nata dos Jardins e onde Célia ia
com o marido "almoçar, jantar
e até tomar um aperitivo". Na
volta, deixava a trouxinha de
roupa para a lavadeira, que morava na Oscar Freire. "E nesse
trecho hoje tão caro, pense
bem."
"Eu ia fazer compras com
200 réis", lembra uma Célia
saudosa dos tempos em que se
tornou sócia do Clube Paulistano -diz ela que teve aula de
cooper com o próprio Cooper,
quando esteve em São Paulo.
Desde então já morou em muitos lugares dos Jardins. E não
pensa em sair da Melo Alves.
"Quem vive nos Jardins não
sai mais", diz Célia, concordando com 67% dos moradores do
Jardim Paulista que acham seu
bairro muito melhor que qualquer outro na cidade (a média
dos paulistanos é de 25%). "Esse miolinho dos Jardins é muito gostoso. E como sempre estive desse lado, eu me afeiçoei."
"Nem ouço mais"
De pulôver preto, lenço verde
estampado amarrado no pescoço, óculos e calças verdes de veludo cotelê, Célia sobe e desce
as escadas da galeria, decidindo
uma compra de artesanato aqui
("não, esse não; esse sim, é bonito"); a mudança de um objeto
de lugar ali ("falta uma igreja da
Nossa Senhora do Brasil aqui
nesse armário, é bom repor"); e
com tempo ainda para receber
velhas amigas da vizinhança.
"Todo dia entra um aqui para
conhecer", diz Célia, enquanto
abre um armário de madeira e
retira um dos oito livros de visitas que guardou nos últimos 30
anos. Passa os olhos e vê, entre
as assinaturas, a do "bom cliente", o empresário Petrôneo
Correia. "Esse vinha muito."
Hoje sua galeria de artesanato "não é mais a única do bairro", muitas pessoas copiaram
suas exposições naif, e ela cedeu a direção do lugar aos filhos
("sou só uma grande palpiteira"). Mas aquelas paredes amarelas por fora e brancas recém-pintadas por dentro -cobertas
de quadros, vasos, bonecos e
objetos dos quatro cantos do
país-, guardam sua história.
O segundo andar da galeria,
hoje com mesas e moringas, era
seu quarto, que "chacoalhava
com os caminhões que passavam na Rebouças". Hoje Célia
olha do janelão de vidro do antigo terraço do casarão, que
agora abriga a grande vitrine de
vidro da loja, e não se espanta
com o som do trânsito. "Barulho? Qual? Nem ouço mais." Só
reclama (olhando pela janela)
dos cães e seus donos, "que
nem sempre juntam a sujeira".
Mas a Galeria Arte Brasileira
"vai bem, obrigado", desde
1978, quando foi aberta. O
know-how quem tinha era o
marido, que por anos trabalhou
na loja de arte popular do pai. E
ela, o tino comercial herdado
da mãe -quando o pai falira,
foi sua loja de chapéus "para as
grandes famílias paulistanas
como Crespi e Matarazzo" que
garantiu toda a sua criação.
Foi na Bela Vista que nasceu
e cresceu, até mudar para os
Jardins. E é nesse pequeno
quadrilátero de ruas, hoje tomado por lojas de grifes e gente
bem vestida passeando com
cães ainda mais vistosos, que
Célia quer continuar vivendo.
Aqui está sua loja, aqui vive sua
família -e é aqui que sobrevive
a memória gostosa dos tempos
em que se comprava arroz no
empório da Oscar Freire.
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