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ORIGENS
Vida na Vila
Viver aqui é um curso prático de impermanência. As coisas mais sólidas, como uma casa, podem sumir de uma semana para a outra
ÍNDIGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Na casa ao lado vive um bicho
que nunca consegui identificar.
No começo, achei que fosse
um papagaio selvagem. Ele
não fala português. Depois
achei que estava mais para uma
arara. Dependendo do dia, parece
um poodle histérico. Seja
lá o que for, é ele meu despertador.
Seus horários são bem rígidos.
Começa o berreiro às 7:30
e pára às nove. Depois, só na
manhã seguinte. Vai ver, é uma
criança.
De dia, tudo é bem calminho
por aqui. Aproveito para escrever.
Dizem que parece cidade
de interior. Bem, eu sou do interior.
Não é isso.Parece cidade
fantasma, o que para efeitos de
escrita, é até melhor.
A rua de cima se chama Purpurina.
A de baixo, Wisard.
Existem duas Vilas Madalenas.
A do dia, e a da noite. À noite, é
sempre Natal. Acho que foi em
2005 que enrolaram umas luzinhas
amarelas nos troncos das
árvores da Aspicuelta, e nunca
mais tiraram. Fora essas luzinhas,
tudo o mais é movediço.
Viver aqui é um curso prático
de impermanência. As coisas
mais sólidas, como uma casa,
podem sumir de uma semana
para a outra. No lugar surge um
estacionamento. Você olha,
olha, e se pergunta se era ali que
havia uma casa com um jardinzinho lindo.
O novo manobrista
não vai saber informar. Os bares,
quando ficam, são mutantes.
O que era um restaurante
mineiro, vira bistrô, que vira
boteco, que depois vira sushi
bar, que vira restaurante contemporâneo
que você nem entende
direito que tipo de comida
serve. Um café pode virar
um brechó, que por sua vez vira
uma revistaria, que vira uma loja,
que vira um ateliê, que depois
vira um portão fechado e
pronto.
Outro dia fui convidada para
uma festa num desses portões,
na rua de trás. Quando entrei,
era um sítio! Havia árvores,
canteiros, uma pequena horta,
bancos de madeira, tudo muito
hippie chique.
No quilo onde costumo almoçar,
sempre tem um ingrediente
improvável na comida.
Pêra no estrogonofe. Pequenos
budas ficam boiando na água
quente entre as travessas.
Cheguei atrasada na Vila Madalena.
Era dois mil e pouco. Já
tinha Blockbuster e falava-se
no surgimento de um Mcdonalds.
Seria o fim. Ele ainda não
chegou, mas o perigo ronda o
bairro.
Outro dia, num domingo de
manhã, encontrei um artista de
verdade, com seu cavalete. Estava
na esquina da Wisard com
a Harmonia, uma esquina estranha,
à qual nos referimos como
a Vila Olímpia da Vila. Mas
lá estava o artista, com sua velha
boina, registrando a fachada
de uma lanchonete patricinha.
Mas acho que só fui sentir na
pele a fragilidade do meu bairro
no dia que a polícia passou uma
multa para o Marquinho, na
Mercearia São Pedro. Então fiquei
realmente preocupada.
Nas semanas seguintes, ninguém
mais gritou ali dentro.
Nem o Xico Sá. Foi uma das
coisas mais estranhas que já vivi.
Todos falando baixo, por
amor ao bar, mostrando uma
educação que a gente nem sabia
que tinha. Foi bonito, foi
heróico e foi difícil. A Mercearia
vive, e o resto da Vila vai sobrevivendo como pode.
ÍNDIGO
é escritora e mantém o blog
www.diariodaodalisca.zip.net
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