São Paulo, sábado, 02 de agosto de 2008 |
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JOSÉ GERALDO COUTO A primeira pessoa
"NO FUTEBOL, a gente não pode usar a primeira pessoa do singular, e sim a do plural", disse Vanderlei Luxemburgo depois da vitória do Palmeiras sobre o Flamengo, ainda irritado com Valdivia, que saiu de cara feia para o vestiário ao ser substituído. Apesar da frase, no restante do discurso o pronome que Luxemburgo mais usou foi "eu". Eu trabalho assim, eu mando, eu venço. Não é o caso, aqui, de tomar partido nessa briga de gente grande, mas apenas de chamar a atenção para a dificuldade, no futebol como na vida, de conciliar o desejo individual e o interesse coletivo. No Ocidente, esse tem sido um dos grandes temas da tradição filosófica. O escritor, cientista e filósofo Bernard de Mandeville (1670-1733), autor da célebre "Fábula das Abelhas", chegou a formular a idéia de que os vícios privados podiam redundar em benefícios públicos. Não deve ser por acaso que, em inglês, o único pronome escrito sempre em maiúscula é o "eu" ("I"). No Oriente, ao contrário, seja pelas tradições religiosas milenares, seja pela experiência das ditaduras coletivistas do século passado, seja simplesmente pelas grandes populações, a tendência é submeter o indivíduo ao interesse da massa. É uma equação delicada. Em momentos especiais, o brilho de um indivíduo, ou de vários indivíduos, se harmoniza com o bem coletivo. Basta pensar no Santos, de Pelé, no Botafogo, de Garrincha, no Barcelona, de Deco, Ronaldinho, Messi e Eto'o. Em casos assim, quanto mais os "eus" individuais se expressam livremente, melhor para o conjunto. O futebol, em seu estado ideal, é um lugar privilegiado de conciliação entre o eu e o nós -para não dizer entre o eu e o cosmo. Ele não exige, como outros esportes coletivos, a anulação das características e idiossincrasias individuais. Ao contrário: estimula-as em grande medida. O técnico de futebol, de certo modo, é o encarregado de fazer com que seu time, por um lado, não se disperse num amontoado de caprichos estéreis, como se fosse uma banda em que cada músico toca num tom e num ritmo diferente, e, por outro lado, não castre aquilo que cada um tem de mais fecundo e original. A referência à música remete a um filme extraordinário, "Ensaio de Orquestra", de Fellini, em que cada músico julga o seu instrumento mais importante do que os outros, e o maestro, para reger aquele caos de notas e de egos, acaba por se converter num tirano fascistóide. Mas, voltando ao futebol, o bom treinador é aquele que consegue fazer o seu time atuar como uma orquestra afinada, se possível contando com o brilho de alguns virtuoses. Vanderlei Luxemburgo já bateu de frente com inúmeros jogadores de personalidade forte -Antônio Carlos, Edmundo, Alex, Marcelinho, Valdivia- e, em geral, saiu-se bem, exceto quando o atrito havia chegado a um ponto de ruptura, como no caso Marcelinho. Sem abrir mão da sua própria vaidade, que não é pequena, o técnico no mais das vezes conseguiu fazer os craques renderem para o time. Por esses motivos, cabe acompanhar com atenção o desenrolar do seu embate com o petulante Valdivia, que não é um craque, mas tampouco é um jogador comum. jgcouto@uol.com.br
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