|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FUTEBOL
Alegria: o gol do Ronaldinho
BENTO PRADO JÚNIOR
ESPECIAL PARA A FOLHA
É rara a perfeição e é com dificuldade que lhe emprestamos fé, quando a vemos explodir,
inesperadamente, a nossos olhos.
Assim foi o gol, de bola parada,
feito pelo Ronaldinho contra os
ingleses, nas quartas-de-final da
Copa do Mundo deste ano.
É claro que muitos disseram:
- Foi por acaso, não foi intencional.
Mas isso é o discurso dos ressentidos ou, no melhor dos casos, daqueles que jamais jogaram futebol, que não têm olhos de ver a
bola, as jogadas, o possível e o impossível e que confundem (por
não saber filosofia) o resultado
incerto com o mero efeito casual.
É certo que há gols inteiramente
casuais e que podem (mas isso
implica em "erro de categoria")
ser considerados "bonitos".
É o caso, por exemplo, do gol feito por um lateral-direito da seleção brasileira (de cujo nome não
me lembro, que teve uma brilhante, mas curta, carreira no futebol
e que a encerrou por participar de
feitos criminais).
Ele pegou a bola no meio do
campo, levantou a cabeça, viu os
atacantes brasileiros que avançavam e tentou lançar-lhes a bola
(digamos, um "chuveirinho" à
distância, ou melhor, um "chuveirão" homérico).
Quis o acaso (o vento, a pressão
atmosférica, a temperatura, tudo
enfim que não depende da jogada
e da intenção e que a precede como a natureza nos precede) que a
bola flutuasse em direção ao ângulo direito do goleiro adversário,
contra todas as expectativas, tanto as do atacante como a do defensor.
Era um gol indefensável, certamente, mas também um gol involuntário.
No momento em que vi aquela
cena, percebi o paradoxo: o gol
era lindo, mas carregava consigo
uma falha: não era a obra de um
artista, mas um puro fenômeno
natural.
Seria, talvez, sublime, como um
penhasco infinito que nos devolve
à nossa insignificância humana.
Ao contrário do que dizem alguns imbecis voluntários -numa expressão que imita o vocabulário de Nelson Rodrigues, que
também era cronista esportivo;
mas que faz exceção para o Tostão, que escreve neste espaço, é excelente cabeça, foi grande jogador
e que viu a jogada de outra maneira-, o gol do Ronaldinho foi
muito diferente.
Para quem já jogou futebol, como eu, estava na cara.
A começar pela posição, bastante adiantada, do goleiro inglês
David Seaman, que era tão cético
quanto Hume (que não era propriamente inglês).
Eu quase gritei:
- Chuta no gol!
Não deu outra.
Já a maneira como Ronaldinho
correu para a bola, a força do impacto do pé direito na chamada
"esférica", tudo, enfim, mostrava
a intenção clara de agredir o arco
do adversário.
Ninguém "centraria" uma bola
com aquela violência e aquela volúpia.
Ele chutou no gol (como é evidente para quem se guia por
idéias claras e distintas) e, maravilhosamente, acertou.
Isto dito, é preciso acrescentar
que, à intenção, ao talento, à arte,
acrescentou-se uma pequena
ponta de acaso -jamais somos
soberanos na natureza.
Era preciso que o regime dos
ventos, que a natureza anônima e
irresponsável, que tudo que escapava à intenção original, que o
Kairos (como os gregos denominavam o puro acaso ou a boa
oportunidade), que tudo isso viesse paradoxalmente como que corrigir a intenção original, para depurá-la de suas imperfeições, fazendo-a coincidir, finalmente,
consigo mesma.
Como se, por milagre, num instante, a natureza se tornasse
cúmplice, uma espécie de pista de
esqui muito bem feita, para permitir ao atleta atingir seu fim sem
nenhum atrito.
Uma espécie de "perfeição" que
os homens acreditam encontrar,
por exemplo, nos diamantes: esse
bruto produto natural que parece
exprimir a mais sofisticada inteligência geométrica.
Mas esse diamante não nos foi
dado pela natureza ou pelo regime dos ventos.
Ele foi produzido intencionalmente pelo Ronaldinho, o gaúcho, que quis botar a bola no ângulo inacessível ao guarda-metas
da Inglaterra.
E ele conseguiu.
Que felicidade!
Bento Prado Júnior é professor da
Universidade Federal de São Carlos
Excepcionalmente hoje não é publicada
a coluna de Tostão
Texto Anterior: Barichello fica frustrado com o segundo lugar Próximo Texto: Panorâmica - Vôlei: Brasil faz 2ª partida contra Portugal Índice
|