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TURISTA OCIDENTAL
Brincando de Kamikase
MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A TÓQUIO
No começo da tarde de ontem
em Tóquio, 21 homens de mais de
70 anos se arrumavam para uma
foto a ser batida por um lambe-lambe. Quase todos usavam gravata. Seguravam uma bandeira
estampada com uma âncora e caracteres japoneses.
""São veteranos da Segunda
Guerra?", perguntou o visitante.
""Sim. Comandantes da Marinha", respondeu um deles, voz
baixa. Um vizinho encheu o peito
e, como se fosse preciso, esclareceu: ""Da Marinha imperial!"
Menos de 40 passos adiante,
dois meninos se divertiam com
dezenas de pombas, criadas ali de
propósito como símbolo da paz.
As aves pousavam em suas cabeças, ombros e braços.
Entre as duas imagens, um abismo de mais de 60 anos: o Japão
que foi à guerra por uma Grande
Ásia do Leste e o país cuja Constituição, promulgada após a rendição de agosto de 1945 aos Aliados,
proíbe a manutenção de Forças
Armadas convencionais com poder de ataque.
Os antigos oficiais estão à vontade: o santuário Yasukuni, em
frente ao qual se perfilam para o
registro histórico de mais um encontro, é um dos mais controversos centros espirituais do mundo.
Aqui estão os restos de 2,466
milhões de militares e civis japoneses que morreram em guerras
desde 1853. Os 8 milhões de peregrinos anuais rezam pelas almas
de todos, entre os quais 1.068 considerados criminosos de guerra,
14 deles executados após a Segunda Guerra (1939-45), como o primeiro-ministro Hideki Tojo.
A única diferença deste sábado
é, segundo um guarda que se recusa a dizer o nome, a profusão de
camisas azuis da seleção japonesa, um dia após a vitória por 2 a 0
sobre a Tunísia que valeu a vaga
nas oitavas-de-final da Copa. O
guarda nunca vira tantas.
O Yushukan, museu militar do
complexo Yasukuni, está fechado
para obras. No dia 9 será
reaberto com um anexo,
ampliando a área de exposições. O acervo é uma
louvação ao belicismo,
em destaque àquele que
levou o Japão a expandir
seu território e formar o
Eixo com a Alemanha e a
Itália.
Enquanto o trabalho
não é concluído, está do
lado de fora a estátua de
um aviador antes de embarcar para uma missão
suicida contra alvo inimigo. Dentro do prédio,
há um torpedo humano
original (""kaiten"), minúsculo submarino que
era carregado de explosivos e com o qual os pilotos kamikazes atacavam.
No mês que vem, os visitantes vão poder continuar entrando dentro dele, numa espécie
de brincadeira macabra para imitar a posição dos pilotos. Verão
também uniformes e objetos pessoais de quem sacrificou a vida
em nome do imperador.
Do lado de fora, no novo anexo
com paredes de vidro, há um
avião original idêntico aos usados
pelos que se matavam mirando,
na maioria das vezes, navios. Não
há palavra sobre as bombas atômicas norte-americanas despejadas em Hiroshima e Nagasaki.
Os kamikazes eram o vento de
Deus -em japonês, ""kami" significa Deus e ""kase", vento. E ""Yasukuni Jinja", ""santuário para estabelecer a paz no império".
Depois de 16 anos em que um
chefe de governo do Japão não
aparecia, o primeiro-ministro Junichiro Koizumi fez uma visita
oficial no ano passado. Vítimas de
atrocidades das forças imperiais
na primeira metade do século 20
protestaram na Ásia.
O Yasukuni constitui um totem
para a extrema direita. É associado ao um renascente ultranacionalismo, ao qual se opõe um vasto
espectro político interno. Antes
de começar a Copa, mesmo com o
repúdio veemente do co-anfitrião, Koizumi voltou lá.
Há má vontade com estrangeiros. Além de não permitir que o
repórter se aproximasse para fotografar o avião, funcionários do
museu, irritados, esconderam a
aeronave sob um pano azul.
Nos hotéis de Tóquio não há indicação do santuário. Nele, quase
todos os comunicados são em japonês. Talvez por dizerem o seguinte: ""O sonho de construir a
Grande Ásia do Leste foi uma necessidade histórica e um pedido
dos países da Ásia. (...) Não podemos deixar de chamar a atenção
para aqueles que querem manchar o bom nome das nobres almas do Yasukuni".
Entre elas, as
de responsáveis
pela invasão de
nações autônomas, tortura, genocídio, trabalhos forçados e
escravização sexual. Desde a
construção do
Yasukuni, em
1869, as cinzas de
todos mortos em
guerras foram
trazidas para cá.
Os restos de Hideki Tojo e outros criminosos
vieram secretamente em 1978.
Doações mantêm o santuário.
Com a camisa da seleção japonesa de futebol, a estudante de fotografia Mariko Sano, 25, fez ontem a segunda visita ao local.
Jogou uma moeda diante do
santuário, em cuja parte de trás
-sem acesso público- estão enterrados os militares.
Cumpriu o ritual de bater duas
vezes as mãos. Rezou ""por todas
as almas" e fez um pedido. ""Nenhum dos que estão aqui tiveram
chance de escolha", afirmou. Como o primeiro-ministro, ela disse
que não glorifica criminosos, mas
homenageia 2,5 milhões de pessoas que morreram pelo país.
De violência real, hoje no Yasukuni só existem as lutas de sumô
realizadas num ringue próximo a
uma oficina de espadas que deixou de funcionar em 1945.
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