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ARTIGO
O mandarim vermelho
Mao Tse-tung, um dos mais duros governantes do século 20, considerava o
ser humano uma estatística e, até a morte, foi o maestro da tragédia chinesa
PEDRO DEL PICCHIA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A China é o mais antigo regime comunista do mundo. A República Popular da China nasceu em 1949, mas o primeiro
Estado comunista autônomo
foi criado em novembro de
1931, tendo, como presidente,
Mao Tse-tung, previamente escolhido por Stalin. Nascido de
uma família camponesa budista em 26 de dezembro de 1893,
o presidente Mao participou da
fundação do Partido Comunista Chinês (PCC), em 1921, e foi
até a morte o maestro da tragédia chinesa.
A China era um império decadente e corrupto, manipulado pelas potências ocidentais
no início do século 20, quando
surgiram o Kuomintang (Partido Nacionalista), que viria a ser
liderado por Chiang Kai-shek, e
o Partido Comunista de Mao
Tse-tung. Ambos guerrearam
entre si, combateram os japoneses e expurgaram os adversários internos, em décadas de
perseguições, torturas e fuzilamentos.
Na Segunda Guerra, Stálin
patrocinou uma aliança
Chiang-Mao para enfrentar o
Japão. Mas as forças comunistas e nacionalistas nunca cessaram as escaramuças entre si.
Mao, com menor poder de fogo,
mas com maior astúcia, ampliou geograficamente as posições dominadas pelo PCC em
território chinês. Após a rendição do Japão, em 1945, bastaram quatro anos para o Exército Vermelho varrer os nacionalistas do continente.
Mao tornou-se, então, um
dos mais duros governantes do
século 20. As vítimas da revolução chinesa contam-se em dezenas de milhões. Impossível
estimar um número exato. Já
no início da disputa territorial
com o Kuomintang, que teve na
Longa Marcha (1934/1935) seu
mais conhecido episódio, a selvageria predominou, tanto por
parte dos maoístas quanto das
tropas de Chiang Kai-shek.
Depois, no período da guerra
contra o Japão, a partir de 1937,
há relatos impublicáveis de episódios de violência. Mulheres
foram torturadas, estupradas e
vendidas em mercados de escravos. Soldados foram fuzilados e até enterrados vivos, conforme atestam depoimentos
aterradores colhidos pelos historiadores Jung Chang e Jon
Halliday (em "Mao - A História
Desconhecida", Companhia
das Letras). "Foi muito divertido enterrá-los", comenta o participante de um dos massacres.
Nos anos 30, Mao descobriu
Edgard Snow, um jornalista
norte-americano simpatizante
da revolução. Cobriu-o de atenções e informações, transformado-o numa espécie de porta-voz oficioso no Ocidente.
Em "Estrela Vermelha Sobre
a China" ("Red Star over China" - Gollacz, Londres, 1973),
Snow oferece uma versão extremamente suave e humana
da atuação de Mao na Longa
Marcha. Conta, por exemplo,
com humor, como os combatentes festejavam quando o
Grande Timoneiro conseguia
superar sua prisão de ventre
crônica. Foi a Snow que Mao
declarou que "quem conquistar
os camponeses conquistará a
China" ("La Mia Vita di Giornalista", Einaudi, Turim, 1977).
A ferro e fogo, ele conquistou
o apoio dos habitantes miseráveis do campo. Mas, enquanto
seus lavradores-soldados marcharam 10 mil quilômetros a pé
nas fileiras do Exército Vermelho, Mao Tse-tung, qual um
mandarim, cumpriu a maior
parte do percurso da Longa
Marcha equilibrando-se numa
liteira, cercado de livros.
Já no poder, sob o lema "Produção primeiro, a vida em segundo lugar", suas políticas
provocaram uma das maiores
epidemias de fome da história
da humanidade, no início do
anos 60. Fala-se em 22 milhões
de mortos. Com as "comunas
populares", institucionalizou
na prática o trabalho forçado
no campo. O delírio chegou ao
ponto de Mao sugerir (dizem
que em termos anedóticos) a
substituição dos nomes das
pessoas por números.
A seguir, quis criar as "comunas urbanas", abolindo os salários, extinguindo o dinheiro e
impondo um sistema de vida
em que todos teriam à disposição seis serviços básicos: alimentação, assistência médica,
educação, funerais, corte de cabelo e cinema, conforme narra
Eric Hobsbawm em a "Era dos
Extremos - O Breve Século XX"
(Companhia das Letras).
Não deu certo. Num belo dia,
ordenou ao povo que fizesse
uma algazarra tremenda, não
deixando os pardais pousarem
em solo chinês, extenuando-os
até a morte em vôo. A operação
foi um sucesso. Tempos depois,
um memorando ultra-secreto
chegou à embaixada soviética
em Pequim, com a solicitação
de 200 mil pardais. Sem os passarinhos no campo, as lavouras
foram atacadas por pragas.
Mao considerava o ser humano uma estatística. Durante a
Guerra da Coréia (1950/1953),
com tropas chinesas combatendo pelo norte e forças dos
EUA pelo sul, o general MacArthur quis usar armas nucleares
contra os comunistas. A ameaça do general não abalou Mao.
O jornalista Martin Walker
(em "The Cold War and the
Making of the Modern World",
Londres, 1993), reproduzido
por Hobsbawm (op.cit.), espantado, diria: "A jovial disposição
de Mao de aceitar a inevitabilidade de uma guerra nuclear e
sua possível utilidade como um
meio de provocar a derrota final do capitalismo deixou tontos seus camaradas de outros
países".
E olha que o Grande Timoneiro só conseguiu detonar sua
primeira bomba atômica em
outubro de 1964, na base de
Qinghai, no noroeste do país.
Mao foi um mestre na arte de
forjar e desintegrar alianças,
externas e internas. Apesar de
temer e ao mesmo tempo adular Stálin, soube por conveniência manter-se fiel a ele. Só
rompeu com os soviéticos depois da revisão doutrinária de
Kruschev. Em casa, perseguiu
dezenas de milhares de dirigentes do PCC. Quando pressentia o perigo, lançava mão de
estratagemas sofisticados.
Foi assim em 1956/57, na
Campanha das Cem Flores, em
que conclamou os intelectuais
e o povo chinês a deixar "que
disputem cem escolas de pensamento". Quem acreditou na
liberalização do regime teve de
acertar contas, a partir de 1965,
com a Revolução Cultural.
Para erradicar a "contra-revolução", convocou o radicalismo de milhões de jovens enraivecidos e ignorantes. Expurgou
a velha-guarda comunista. Um
dos perseguidos foi Deng Xiaoping, considerado "defensor do
capitalismo". Sobreviveu e, por
ironia, veio a ser o arquiteto da
China moderna.
Esmagada a oposição, Mao
convocou o Exército para colocar fim às arruaças da Guarda
Vermelha de que tirara proveito. Daí para a frente, apesar de
receber Nixon em Pequim, em
1972, a vida de Mao mergulhou
numa decadência física irreversível até sua morte, em 9 de setembro de 1976. Antes, cometeu mais uma maldade.
Em 1973, Mao reabilitou
Deng Xiaoping, colocando-o de
volta na alta hierarquia do PCC.
Mas tomou o cuidado de contrapor a ele o "Bando dos Quatro", chefiado por sua esposa
Jiang Qing. No confronto, Deng
contou com o apoio decisivo de
Chu Enlai, o dirigente chinês
que por mais tempo ficou ao lado de Mao Tse-tung -de 1921
até morrer, em janeiro de 1976.
Chu Enlai pagou caro por isso. Com câncer, foi proibido
por Mao de deixar o governo
para se tratar. Alguns historiadores dizem que Mao decidiu
castigá-lo ao perceber o apoio a
Deng, outros afirmam que o
motivo foi mais simplório: o
Grande Timoneiro não suportaria a idéia de que Chu o sucedesse no comando. Por uma ou
outra razão, foi a última crueldade do mandarim vermelho.
PEDRO DEL PICCHIA é jornalista e escritor
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