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MARCELO COELHO
Passeio pelo Burasiro
Como o sertão de Guimarães Rosa, seria o caso de dizer que Japão e Brasil estão em toda parte
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APESAR DAS MUITAS homenagens aos cem anos da imigração japonesa, fiquei com a
sensação de que ainda vai demorar
um bocado até que se conheçam
realmente todos os pontos de contato entre as culturas do Brasil e do
Japão.
Para mim, pelo menos, a mostra
"Laços do Olhar", em cartaz no Instituto Tomie Ohtake até 10 de agosto, foi uma sucessão de surpresas.
O curador Paulo Herkenhoff não
se limitou a fazer apenas um recenseamento das obras de artistas nipo-brasileiros. Muitas coisas nessa exposição, que diríamos brasileiríssimas, foram como que traduzidas,
transfiguradas, para o universo da
cultura japonesa.
Cito um exemplo de impacto instantâneo. Algumas fotos de uma luta
ritual de índios do Xingu são colocadas ao lado de imagens de lutadores
de sumô. Seria disparate falar em
"influência" dos índios sobre o Japão ou vice-versa. Na prática, há
apenas uma coincidência impressionante de atitudes corporais.
Mas aí intervém essa palavrinha,
que tem sido utilizada de um modo
meio pretensioso ultimamente: o
"olhar". Na mostra do Instituto Tomie Ohtake, o termo não poderia ser
mais adequado. É como se determinada realidade pudesse ser "japonesa" ou "brasileira", conforme o modo como olhamos para ela.
Dois retratos a lápis de Ismailovitch, quase fotográficos em sua perfeição, surgem em outra parede.
Quem é o japonês? Quem é o mulato
ou o índio? Poderiam ser irmãos. E
tanto um cristão como um budista,
ou um judeu, podem perguntar:
"Mas não são?".
As semelhanças nem sempre são
tão óbvias. Uma escultura abstrata,
branca, deitada no chão, desenvolve
um movimento curvo, feito de minúsculos cubos que se elevam uns
sobre os outros, e descem em seguida, subindo de novo até cair a nossos
pés. É uma bela escultura. Mas já estamos impregnados de Japão, e o
que se pode ver ali é uma tradução
austera, "brasiliense", da célebre onda gigante de uma gravura de
Hokusai.
Dois quadrinhos de Mira Schendel, com rabiscos minúsculos sobre
papel fino, de repente se tornaram
compreensíveis para mim: são ideogramas! Ou, talvez, memórias de
ideogramas, como um poema abandonado ao mar.
Mas a exposição não fica só no plano das aproximações subjetivas. Há
muita documentação histórica também. Recortes e mais recortes de
jornal contam a viagem do crítico
Mário Pedrosa ao Japão, em 1958.
Ficamos sabendo que Eliseu Visconti (1866-1944), em plena "belle
époque" brasileira, colecionava estampas japonesas.
Claro que da mostra também fazem parte alguns quadros de Manabu Mabe, Tomie Ohtake, Yoshiya
Takaoka. Mas a origem étnica, como
nunca é demais lembrar, é irrelevante em si mesma; certas paisagens
urbanas da década de 40, feitas por
imigrantes japoneses (há belíssimas
também numa mostra na Pinacoteca do Estado) podem ser confundidas com as pinturas da mesma época feitas por gente de sobrenome italiano ou espanhol: Mick Carnicelli, Rebolo, Zanini.
Como o sertão de Guimarães Rosa, seria o caso de dizer que o Japão
(e o Brasil) estão em toda parte.
O que não significa, é claro, dissolver as características de cada cultura
numa espécie de insosso caldo universal. Tendemos a oscilar entre
uma visão muito estreita e "preservacionista" das identidades culturais (veja-se a luta contra o uso de
palavras de origem inglesa, por
exemplo) e uma espécie de elogio
igualmente "patriótico" da mistura
e da mestiçagem, que tenderia, no limite, à abolição das diferenças num
grande ecletismo pós-moderno ou
numa eufórica bagunça tropicalista.
A exposição "Laços do Olhar" sugere outra coisa: as diferenças culturais existem, mas não são propriedade de ninguém. Antigamente, os
brasileiros de elite se esforçavam em
falar francês ou inglês sem sotaque
nenhum. A cultura brasileira ficou
mais forte, sem dúvida, quando um
"sotaque brasileiro" pode ser reconhecido em toda parte.
O sotaque não é só um jeito de falar. Há jeitos de olhar as coisas, de ler
um livro, de viver a vida, que são sotaques também. Cada indivíduo tem
o seu; mas todo país pode ser refeito
e "redito" na linguagem de outro.
Depois da exposição no Instituto
Tomie Ohtake, saí vendo um outro
país, que é o Brasil em que sempre
vivi. Mas aprendi a chamá-lo de outro jeito: digamos, Burasiro.
coelhofsp@uol.com.br
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