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CONTARDO CALLIGARIS
Ser homem ou mulher
A anatomia é o destino? Talvez, mas há lugares em que a mulher pode escolher ser homem
NOS ANOS 1960, "descobrimos" que a identidade de cada gênero, masculino, feminino ou outro (há outros, sim), era
construída e imposta pela cultura
em que vivíamos. Ou seja, nosso
sentimento íntimo de ser homem
ou mulher dependia dos valores que
nos eram transmitidos: "alguém"
nos oferecera bonecas ou soldados e
nos propusera futebol ou costura.
A descoberta encorajou a militância igualitária, os papéis sociais de
homens e mulheres se aproximaram e, enfim, tornou-se possível
sentir-se homem e cuidar das crianças ou fazer bordado, e sentir-se mulher e pensar na vida profissional ou
entrar no exército. Isso, sem que
ninguém se atormentasse com dúvidas excessivas sobre sua identidade
viril ou feminina.
Nas últimas décadas, houve um
refluxo: hoje, sentir-se homem ou
mulher nos parece ser, antes de
mais nada, um efeito da diferença
biológica entre os sexos.
Talvez seja por causa das próprias
mudanças que mencionei acima: as
diferenças culturais entre gêneros
se tornaram menos relevantes e
procuramos outras, mais "sólidas".
Mas muitos dirão que aconteceu o
seguinte: os avanços da ciência mostraram que, na constituição das
identidades de gênero, hormônios,
genes etc. contam mais do que as palavras e os comportamentos. Ou seja, pouco importa que eu vista você
de renda ou de farda, você será ou se
sentirá homem ou mulher como
mandam a química e a física de seu
corpo.
Paradoxalmente, essa posição,
que pretende ser materialista, parece apostar na separação de corpo e
mente, como se um mundo "real" de
genes e hormônios existisse separado do da fala e dos atos da gente (que,
cá entre nós, não é menos real).
Acho mais provável que haja um
mundo só, em que interagem fenômenos descritos de jeitos diversos,
mas que pertencem a uma única
realidade, a nossa, feita de descargas
hormonais, obrigações indumentárias e comportamentais, genes, xingões, chapoletadas, neurotransmissores, conselhos, amores e carícias.
Além disso, é bom não esquecer
que a primazia atual das explicações
"anatômicas" é, por sua vez, um fato
cultural. Ela é a evolução esperada
da cultura ocidental moderna, que
promove, dessa forma, sua melhor
idéia: a de uma humanidade comum
a todos, além das diferenças culturais. Por exemplo, para justificar a
existência de direitos humanos universais, nada melhor do que uma definição da espécie a partir da biologia comum e não das culturas, que
divergem.
Seja como for, o clima de hoje sugere que a anatomia seja o destino.
Nesse quadro, é bom meditar sobre
um extraordinário artigo de Dan Bilefsky, no "New York Times" de 25
de junho (em www.nytimes.com,
procurar "Woman as Family
Man"). Bilefsky viajou pelas montanhas do norte da Albânia, onde
sobrevivem os restos de uma cultura tradicional, regida por um cânon
rigoroso que, entre outras coisas,
prescreve a vendeta entre famílias,
de geração em geração: vocês matam um dos nossos, nós mataremos um dos seus -sendo que só
podem matar e ser mortos os homens das respectivas famílias.
"Abril Despedaçado", de Ismail
Kadaré (Companhia das Letras),
dá uma boa idéia do clima local.
Quem não leu pode assistir ao filme homônimo, de Walter Salles,
que transpôs o romance de Kadaré
para o norte do Brasil no começo
do século 20.
Pergunta: o que acontecia, numa
cultura como essa, quando só sobravam as mulheres de uma família? Pois é, no caso, encorajada pelo
fato de que, nessa cultura, ser mulher era especialmente chato, uma
virgem, livremente, podia decidir
ser homem. Ela cortava o cabelo,
vestia-se de homem, carregava faca
e arma, sentava-se com os homens
e com eles rezava na mesquita, matava e era morta nas vendetas e
tornava-se patriarca da família.
Belefsky encontrou e fotografou
várias mulheres-homens, na faixa
dos 80 anos, mulheres que, 60 anos
atrás, virgens, renunciaram à vida
sexual e decidiram ser homens. E,
de fato, sentiram-se e foram homens. Na verdade, ainda são: no
pleno exercício de seu patriarcado.
O que assombra nessa história,
aliás, não é só a construção cultural
do gênero, mas a incrível liberdade
que se revelava possível numa sociedade estritamente tradicional (a
gente pensa, em geral, que a liberdade de escolha seja coisa exclusivamente nossa).
Queria prestar homenagem a
Ruth Cardoso. O jeito foi escrever
sobre algo que, onde quer que ela
esteja hoje, talvez a interesse.
ccalligari@uol.com.br
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