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FERREIRA GULLAR
A máscara da face
O rosto é a máscara que o acaso biológico nos impôs como identidade, gostemos dele ou não
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JÁ ESCREVI aqui sobre o rosto
humano, a propósito da descoberta que fizera então, óbvia e
surpreendente, de que "estamos na
cara", isto é, em nossa cara. E apesar
de já tê-lo dito e de sabê-lo, continuo
a me surpreender com esse fato banal, que se torna mais evidente
quando vejo um lindo rosto de mulher: ela tem ombros, busto, quadris,
coxas e pernas, move-se na quadra
de tênis como se voasse -como Maria Sharapova-, mas tudo se resume, para nós, num rosto.
E então pensei no contrário do
rosto: pensei na máscara, no que não
somos. Porque o rosto é o que somos, inventou-se a máscara, a ocultação do que somos.
Certamente já escreveram sobre
isso. Deve haver estudos e teorias
sobre esse tema, pelo qual nunca me
interessara, até este momento.
Lembro-me de que uma das primeiras pinturas rupestres, do paleolítico, mostra uma figura mascarada,
que se supõe seja um feiticeiro ou
um caçador disfarçado de animal. Se
for uma coisa ou outra, o significado
de mascarar-se será diferente: sendo o caçador, é um disfarce; se for
um feiticeiro, trata-se da representação de uma entidade mítica, dotada de poderes sobrenaturais.
Ao longo da história, em povos e
civilizações diferentes, a máscara representava espíritos em geral demoníacos, que participavam de rituais,
fosse para exorcizá-los, fosse para
atemorizar os membros da comunidade e torná-los obedientes e submissos. Muitas dessas máscaras, que
estão hoje em museus de antropologia, exageram na expressão assustadora, na feiúra que seria própria dos
demônios.
Mas a máscara tem tido funções
diferentes nas diferentes culturas,
seja como um modo de garantir a vida depois da morte, como no antigo
Egito, seja como um modo de enganá-la, cobrindo o rosto do cadáver
com uma cara inventada.
Aliás, como é óbvio, a máscara, falso rosto, foi criada para enganar, pelo fato mesmo de que, como ficou dito, nosso rosto somos nós. E, se assim é, ele nos identifica e, portanto,
nos denuncia, pelos traços fisionômicos, mas também pela expressão
do olhar. De cara exposta, olho no
olho, é quase impossível fingir, mentir, enganar, mas, por trás da máscara, estamos a salvo do olhar perscrutador. Não adianta fitar os olhos, se
não sabe de quem são.
Devemos admitir que desse olhar
perscrutador queremos todos escapar e aí talvez esteja a razão fundamental porque a máscara esteve
sempre tão presente na vida dos povos. No Ocidente, particularmente,
a partir do desenvolvimento da economia, o olhar que indaga foi se tornando mais agudo e necessário: é
que nasceu o comércio, a transação
fundada na confiança e, então, segundo Arnaldo Hauser, surge a psicologia. Essa situação fez nascer um
outro tipo de máscara, ou seja, o cara-de-pau, que não hesita em se fazer passar pelo que não é. E assim,
além da máscara material, existe a
de cara limpa. A máscara virtual do
fingidor.
E aqui tocamos num ponto que
explica, em grande parte, a invenção
da máscara pelo homem, o fato de
que, se o rosto que temos somos nós,
nem sempre queremos expô-lo,
porque nem sempre queremos nos
expor, não só por autodefesa como
também porque não sabemos quem
somos e não sabemos, tampouco, se
o outro, ao nos olhar, nos vê como
somos ou desejamos ser vistos. É
que o que somos só ganha realidade
pelo reconhecimento do outro, ou
seja, não somos, de fato, senão porque nos inventamos tal como queremos que o outro nos reconheça e
aprove. Esse personagem inventado, que mostramos ao outro, exige
de nós equilíbrio e adequação ao
meio social, a fim de que ele nos
aceite como pessoa verdadeira e não
como um "mascarado".
Essa relação do rosto e da máscara
parece decorrer da necessidade que
temos de ficar livres do olhar do outro e livres, portanto, de sermos, para ele, aquela mesma pessoa de
quem espera as mesmas coisas. Por
essa razão, Jean-Paul Sartre dizia
que "o inferno são os outros".
A questão toda é que nem para nós
somos os mesmos, sempre, totalmente fiéis aos e princípios que decidimos adotar. Ser ético não é jamais se deixar tentar pelo erro e,
sim, resistir à tentação, para poder,
depois, olhar-se no espelho, sem
sentir constrangimento.
Talvez o certo seja dizer que o rosto é a máscara que o acaso biológico
nos impôs como identidade e é o espelho que nos informa da cara que é
nossa, gostemos ou não. Mas, segundo li, nos Estados Unidos, graças à
cirurgia plástica, já se pode trocar o
rosto de nascença pelo de uma bela
atriz ou de um belo ator, que se admira. E andar com a cara dela (ou
dele) pelas ruas da cidade.
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