São Paulo, sábado, 06 de outubro de 2007

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Relato emocional narra a viagem da corte em 1807

Diário de oficial britânico foi lançado em 1810 e nunca tinha sido publicado no Brasil

Livro inaugura coleção que marcará as comemorações dos 200 anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil, no ano de 1808

Reprodução/Arquivo da Fundação Biblioteca Nacional
Cena representando a partida da família real portuguesa do porto de Lisboa em direção ao Brasil, em novembro de 1807, segundo gravura realizada por Francesco Bartolozzi (1728-1815)

MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL

"É incrível que esse livro nunca tenha sido editado antes no Brasil", diz a historiadora Lilia Moritz Schwarcz. Escrito em 1810 para um grupo restrito de autoridades, o relato do oficial britânico Thomas O'Neil da viagem da família real portuguesa ao Brasil criou o imaginário da inauguração do período joanino, descreveu um episódio importante da luta entre a Inglaterra e a França napoleônica e registrou um momento fundador do Brasil.
Primeiro, um reparo. Para fazer justiça ao primeiro-tenente da esquadra inglesa, o título do livro que inaugura a coleção comemorativa aos 200 anos da chegada da família real (leia ao lado) deveria ser diferente daquele que a editora José Olympio lança no dia 26. "A Vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil" (128 págs., R$ 29) deveria ser, segundo o autor, "a fuga da família real", com todo o respeito à casa de Bragança.
O diário de viagem de O'Neil sempre foi citado pelos autores que se debruçaram sobre o Brasil do século 19, e seus exemplares eram raros. A edição que será colocada ao alcance do público brasileiro foi adaptada de uma cópia que pertencia ao bibliófilo José Mindlin.
Ainda que o título não seja fiel ao concebido pelo oficial britânico, a edição respeita o original e traz prefácio da historiadora Schwarcz, que conhece bem o livro -uma das fontes de seu "A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis" (Cia. das Letras).
O'Neil fez parte da esquadra comandada pelo almirante Sidney Smith, um dos grandes heróis britânicos da época, que depois teria papel importante nos bastidores políticos da corte no Rio (aliado de Carlota Joaquina contra d. João 6º).
O primeiro-tenente descreve o clima que antecedeu a fuga da família real em 1807, a comoção que marcou o embarque, os perigos e provações da viagem realizada às pressas, a emoção do desembarque no Brasil e faz um relato subjetivo do que vivenciou no país nos primeiros meses do período joanino, incorporando-se à extensa bibliografia dos viajantes.

Retrato
O britânico também pinta um retrato heróico dos ingleses e faz uma representação fartamente adjetivada dos franceses e de Napoleão ("infame símbolo de Lúcifer", "arquiinimigo do mundo", "usurpador inescrupuloso", "pérfido corso").
O'Neil descreve "a grande confusão e extrema angústia" que abateu a corte com a notícia do deslocamento iminente e o "alarme e aflição impossíveis de descrever" com a notícia da proximidade das tropas napoleônicas.
Ainda que tecnicamente possa não ser fiel aos bastidores das negociações entre Portugal, a aliada Inglaterra e o regime francês empenhado em refazer o mapa político europeu e varrer monarquias (parcialmente reinvestidas com o Congresso de Viena), os fatos que O'Neil descreve dão conta da política de neutralidade simulada da corte portuguesa.
Para O'Neil, a esquadra britânica parte sem conhecer sua missão e, quando chega a Lisboa, não está totalmente claro se ao final vai bombardear a cidade ou proteger sua elite. Também dá a entender que, se os ventos não tivessem mudado na madrugada do dia 29 de novembro de 1807, permitindo aos navios zarpar, a família real teria sido alcançada pelas tropas de Napoleão. Como isso teria mudado a história?
O livro também expõe o medo da reação popular diante do anúncio da partida e apresenta estimativas para o tamanho da empreitada (cerca de 16 mil pessoas e 45 navios). Dá colorido a um momento que já era conturbado e propício aos boatos. Como se sabe, circulavam rumores de que Sua Alteza Real teria embarcado vestido de mulher. Houve a famosa versão de que a rainha, d. Maria 1ª (a louca), teria declarado: "Não corram tanto, ou pensarão que estamos fugindo".
Num momento em que os feitos heróicos eram essenciais, e em que a exaltação política propiciava pontos na corte, O'Neil descreve os detalhes os gestos da família portuguesa em sinal de amizade e lealdade aos ingleses. Isso é traduzido, por exemplo, em cerimônias exuberantes que se seguiram à chegada ao Brasil.
Pesa contra o relato o fato de que O'Neil não acompanhou a família em todo o trajeto. Ele foi deslocado para combater as tropas de Napoleão e depois rumou diretamente para o Rio, enquanto d. João 6º foi para a Bahia, antes de seguir ao Rio. Mas deixa isso claro no seu texto. "A tradição dos relatos de viagem que trazem o "eu estive lá" é recente", diz Schwarcz.


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