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Um minotauro no Municipal
Ópera "Ariadne em Naxos", do alemão Richard Strauss, estréia no próximo domingo em SP; reportagem assume o papel do Minotauro e revela os bastidores dos ensaios
Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem
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A cúpula, sótão do Teatro Municipal, onde os cantores ensaiam "Ariadne em Naxos"
MINOTAURO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Sei que me acusam de soberba, talvez de misantropia e talvez de loucura. Tais acusações
(que eu castigarei no devido
tempo) são irrisórias. O fato é
que sou único, filho de rainha e
meu espírito está preparado para o grande.
Por isso, jamais compreendi
por que esse compositor alemão Richard Strauss escreveu
sobre Ariadne, e não sobre
mim. Ariadne é a fêmea que
deu a Teseu um novelo de lã
para que ele saísse de meu labirinto em Creta. Isso após me
matar (castigarei a ambos no
devido tempo).
Agora esta ópera, "Ariadne
em Naxos", será apresentada
no Teatro Municipal de São
Paulo pela primeira vez. Eu
quase não apareço em cena.
Não tenho nem sequer uma fala. Cento e cinqüenta e oito
pessoas estão envolvidas nessa
produção. Castigarei a todos no
devido tempo. Por ora, estou
curioso para saber quem virá
assisti-la. Serão touros ou homens? Serão talvez touros com
cabeças de homem? Ou serão como eu?
De qualquer forma, os ingressos são baratos: entre R$
10 e R$ 40, à venda nas bilheterias do teatro, pelo telefone
0/xx/11/6846-6000 ou no site
www.ticketmaster.com.br.
A estréia é no domingo que vem
e serão apenas quatro récitas,
nos dias 17, 19, 21 e 23.
"Ariadne em Naxos" é um espetáculo dividido em dois atos.
No primeiro ato, uma companhia se prepara para apresentar uma ópera na festa de um
novo rico. Tudo vai bem até que
o mordomo avisa que a ópera
terá que dividir seu espaço com
uma trupe de comediantes. No
segundo ato, vemos a ópera encenada pela companhia, com os
devidos apartes dos comediantes, como se fôssemos um dos
convidados daquela festa. Chamam a esse curioso recurso de
metalinguagem. Nesse segundo ato, Ariadne foi abandonada
por seu amado Teseu na ilha de
Naxos. Bem feito para a fêmea.
Legendas em português
Os cantores contam essa história em alemão, mas há legendas projetadas em português.
Tanto faz para mim, já que não
leio nem mesmo o grego. Jamais retive a diferença entre
uma letra e outra. Certa impaciência generosa não permitiu
que eu aprendesse a ler.
Vago pelas sombras do Municipal e lembro de minha casa.
São tantas escadarias recônditas, corredores estreitos, elevadores ocultos e andares obscuros (oito ao todo, mas poderiam ser infinitos) que o teatro
vira um labirinto. Em cima de
tudo, acima do belo lustre que
enfeita o teto da sala de espetáculos, esconde-se um sótão que
serve de sala de ensaios. Chamam-lhe cúpula.
Ali na cúpula, o diretor cênico e cenógrafo, André Heller-Lopes, ensaia com os cantores.
"Não é música. Não é teatro. É
ópera", ouço o diretor anunciar. "Vamos refazer a cena em
que o mordomo anuncia a trupe de comediantes", ele sorri
ao falar. Não é um homem colérico (como era o rei Minos, de
Creta, que ordenou a construção do labirinto). Mas é um diretor detalhista, especializado
em óperas, já trabalhou nessa
mesma peça em Londres: "De
novo, desde o começo".
Ariadne é interpretada por
Eiko Senda, japonesa que mora
no Uruguai e que tem uma voz
soprano lírico-spinto (aguda,
mas com força e densidade).
Ela traz o filho de 3 anos para o
ensaio. O nome do menino é
David, mas ele só quer ser chamado de Homem-Aranha.
Zerbinetta, outro papel importantíssimo dessa ópera, é de
Andrea Ferreira, brasileira soprano coloratura (alcançam
notas mais agudas com mais
agilidade) que mora na Itália. E
o papel do Compositor pertence à mezzo-soprano (voz mais
encorpada que a soprano e com
extensão maior na região central-grave) Denise de Freitas.
Esse é um "trouser role", ou
"travesti role", como quiser,
em que uma mulher interpreta
um homem.
Essas três são as principais,
mas não as únicas. São 17 os solistas convidados. Há ainda o
tenor (faixa de sons mais aguda
que pode ser emitida, no canto
lírico, por um indivíduo do sexo masculino) Marcelo Vannucci, o barítono (mais grave,
porém não tanto quanto a chamada baixo) Leonardo Neiva e
muitos outros (a quem castigarei no devido tempo, isso deve
ficar bem claro).
Monstro na rua
Enquanto esses ensaiavam
na cúpula no início da semana
passada, os 36 músicos, todos
da Orquestra Sinfônica Municipal, faziam a sua parte na sala
Olido, a um quarteirão de distância. Não podiam usar o palco do Municipal porque ali os
15 cenógrafos montavam o cenário da ópera.
Resolvi acompanhar um
pouco do ensaio da orquestra e
fui para a rua, certa manhã. Da
praça Ramos para a avenida
São João descortinava-se apenas um quarteirão, como disse,
pela Conselheiro Crispiniano.
Mas o choro desvalido de um
menino e as toscas lamúrias da
multidão disseram que haviam
me reconhecido. O povo rezava,
fugia, prosternava-se; alguns
juntavam pedras. Um deles,
creio, escondeu-se no antigo
Mappin, hoje Casas Bahia. Não
em vão minha mãe foi rainha;
não posso me confundir com o
vulgo, embora minha modéstia
deseje. O fato é que sou único.
Antes de voltar ao labirinto,
porém, assisti a um pouco do
ensaio. Esse regente, José Maria Florêncio, me lembra um
pouco mais o rei Minos. "Eles
morrem de medo de mim", ouço-o dizer, em referência aos
músicos que comanda. "É que
sou um maestro de 46 anos
com experiência de 70. A realidade da Polônia é diferente,
com óperas e concertos encarados como atividades cotidianas." Ele trabalhou lá por 20
anos e agora é o titular da orquestra do Teatro Municipal.
A regência o consome. Ele
usa uma toalha tanto quanto a
batuta. Sua camisa fica empapada de suor. "Por um ano, me
pesei depois dos ensaios e concertos. Perco entre um quilo e
um quilo e meio a cada vez. O
estresse do ensaio é maior. É
preciso estar aceso, notar os erros. Se passar um errinho, perco a autoridade", ensina.
Ensaio de orquestra
"Viola, celo, fagote. mais sofrimento, mais chorado", diz
Florêncio, enquanto estala os
dedos. Os músicos obedecem, é
claro.
"Ouçam como vocês estão
cantando! Desse jeito ninguém
vai ouvir. Todo mundo vai dormir! Alegretto, alegretto!", diz
Florêncio. Os cantores obedecem, é claro.
Minha curiosidade me impele a saber qual desses instrumentos é o mais importante,
mas isso é difícil de descobrir
entre os membros dessa orquestra.
"O primeiro violino orienta o
maestro. É um cargo de liderança", diz Pablo de Leon, primeiro violino. "O celo conduz
toda a harmonia da obra", discorda Raiff Dantas, líder dos celos. "O clarinete conduz as vozes. É como um outro solista",
opina Luis Afonso Montanha,
clarinetista. "O oboé é o instrumento que afina a orquestra.
Ouve-se muito bem", acredita o
oboísta Alexandre Ficarelli.
Voltando à cúpula do labirinto, acompanho mais um pouco
do ensaio cênico. Zerbinetta,
dos comediantes, beija o Compositor na boca, numa tentativa de convencê-lo que sua ópera não será destruída pelos
apartes de comédia. O Compositor se desvencilha de Zerbinetta. O diretor sorridente sorri novamente: "Tenha uma reação mais violenta, como se ela
tivesse machucado seu braço".
A punição
Essa frase me desperta lembranças profundas. Penso em
quando, a cada nove anos, entravam em minha casa nove homens para que eu os livrasse de
todo o mal. Me imagino naquele
tempo, ali na cúpula do Teatro
Municipal de São Paulo.
Ouço as vozes dos cantores
da ópera e corro alegremente a
seu encontro. A cerimônia dura
poucos minutos. Cai um depois
do outro sem que eu ensangüente as mãos. Onde caem, ficam, e
os cadáveres ajudam a diferenciar a cúpula dos outros andares.
Mas é apenas um devaneio.
Eles serão castigados, mas, por
ora, precisam estrear essa ópera em São Paulo.
(IVAN FINOTTI)
Trechos em itálico retirados de "A Casa de Astérion", do livro "O Aleph", de Jorge Luis Borges
(Companhia das Letras). No conto, o Minotauro
divaga sobre sua vida e sua morte.
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