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CINEMA
Para jornalista americano, filme é "piedoso" com o líder revolucionário
"Diários" realiza retrato antagônico de Che Guevara
Reprodução do livro "Cuba por Korda"
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Che Guevara (centro) com a mãe Celia d la Serna y Llosa, em foto de "Cuba por Korda" (ed. Cosac & Naify) |
PAUL BERMAN
DA "SLATE"
O culto a Ernesto Che Guevara é um episódio da indiferença moral de nossos tempos.
Che foi um totalitário. Ele não
realizou nada, a não ser o desastre. Muitos dos líderes da primeira fase da Revolução Cubana
eram a favor de uma direção democrática ou democrático-socialista para a nova Cuba. Mas Che
era defensor ferrenho da facção
de linha-dura, pró-soviética, e sua
facção venceu.
Che presidiu sobre os primeiros
pelotões de fuzilamento da Revolução Cubana. Ele fundou o sistema dos chamados campos de trabalho de Cuba, que acabou sendo
utilizado para encarcerar gays,
dissidentes e vítimas da Aids. Ser
morto e fazer com que muitas outras pessoas fossem mortas era algo de importância capital na imaginação de Che. No célebre ensaio
no qual lançou seu chamado retumbante por "dois, três, muitos
Vietnãs", também falou do martírio e compôs várias frases assustadoras: "O ódio como elemento da
luta; ódio inabalável pelo inimigo,
que impele o ser humano para
além de suas limitações naturais,
transformando-o numa máquina
de matar, eficaz, violenta, seletiva
e a sangue frio. É isso o que nossos
soldados precisam se tornar...", e
assim por diante.
Ele foi morto na Bolívia em
1967, liderando um movimento
guerrilheiro que não conseguiu
recrutar um único camponês boliviano. Apesar disso, conseguiu
inspirar dezenas de milhares de
latino-americanos de classe média, levando-os a deixar as universidades e organizar insurgências
guerrilheiras próprias. E essas insurgências tampouco conseguiram qualquer coisa exceto provocar a morte de centenas de milhares de pessoas e criar reveses para
a democracia latino-americana
-uma tragédia na maior escala
possível.
Inimigo da liberdade
O culto atual ao Che -as camisetas, os cartazes etc.- conseguiu
obscurecer essa realidade terrível.
Agora o filme "Diários de Motocicleta", de Walter Salles, vai tomar
seu lugar no cerne desse culto. O
filme já foi ovacionado no festival
de Sundance, de Robert Redford
(que, por sinal, é o produtor executivo de "Diários de Motocicleta"), e foi recebido com admiração calorosa pela imprensa.
Che foi inimigo da liberdade,
mas foi erguido em símbolo da liberdade. Ele ajudou a criar um
sistema social injusto em Cuba,
mas foi erguido em símbolo da
justiça social. Ele representava a
rigidez antiga do pensamento latino-americano em versão marxista-leninista e foi celebrado como livre-pensador e rebelde. E é
isso o que é feito em "Diários de
Motocicleta", do cineasta brasileiro Walter Salles.
O filme acompanha a trajetória
do jovem Che e de seu amigo Alberto Granado numa viagem solta pela América Latina em 1951-52, viagem essa que o próprio Che
descreveu num livro publicado
sob o título de "Diários de Motocicleta", e Granado, em outro livro. Naquela época Che era estudante de medicina e Granado,
bioquímico.
Na vida real, como no filme, os
dois passaram semanas trabalhando como voluntários num leprosário no Peru. Aquelas semanas no leprosário constituem o
cerne dramático do filme. A colônia era comandada tiranicamente
por freiras que mantinham uma
hierarquia cruel entre funcionários e pacientes. As freiras se recusam a alimentar pessoas que deixam de assistir à missa.
Em sua honestidade insistente,
o jovem Che se revolta contra essas imposições, e sua rebelião é
instigadora de ver. Você pensa
que está assistindo a um protesto
nobre contra os usos e costumes
opressivos e autoritários de uma
Igreja Católica obscurantista em
sua versão mais reacionária.
No entanto, em seu conceito e
em seu tom, o filme inteiro exala
um culto cristológico ao martírio,
um culto de adoração à pessoa espiritualmente superior que se
desvia em direção à morte -ou
seja, precisamente o tipo de adoração que a Igreja Católica latino-americana promoveu por séculos,
com conseqüências infelizes.
A rebelião contra o catolicismo
reacionário, no filme, é em si mesma uma expressão do catolicismo
reacionário. As igrejas tradicionais da América Latina são repletas de estátuas de santos ensanguentados e assustadores.
E a atração masoquista exercida
por essas estátuas é precisamente
o que se vê nos muitos momentos
em que o filme mostra o jovem
Che pondo os pulmões para fora
em acessos de asma e testando
seus limites ao nadar na água fria
-cenas essas que se tornam belas
e sedutoras em razão de um pano
de fundo sensual de tons de verde,
cinza e marrom e em função dos
belos rostos magros de um ator
depois de outro, e das violentas
paisagens andinas.
Em sua história, o filme se atém
mais ou menos de perto aos diários de Che, com alguns poucos
acréscimos de outras fontes. O
diário em si tende a ser fortuito e
não ideológico, excetuando alguns poucos trechos. Quando
partiu nessa viagem, Che ainda
não era ideólogo. Ele refletiu sobre a história multifacetada da
América Latina e expressou atitudes que conseguiam ser a favor
dos indígenas e, ao mesmo tempo, dos conquistadores.
Mas o filme é consideravelmente mais ideológico do que o diário,
ansioso por expressar uma atitude "indigenista" (o termo é marxista latino-americano) de solidariedade para com os índios e hostilidade aos conquistadores. Alguns textos marxistas peruanos
chegam a aparecer na tela. Posso
imaginar que Salles e seu roteirista, José Rivera, tenham sido influenciados mais pelo subcomandante Marcos e sua rebelião "indigenista" em Chiapas, no México,
do que por Che Guevara.
No entanto, apesar de todo o indigenismo ostensivo do filme,
seus momentos de maior drama
têm muito pouco a ver com o passado indígena ou com o próprio
Novo Mundo.
O drama é espanhol, da forma
mais arcaica, combinando o martírio católico das cenas que lembram Cristo com o espírito de pé
na estrada, não de Jack Kerouac
-como algumas pessoas poderiam imaginar-, mas de Dom
Quixote e Sancho Pança, uma fórmula testada e comprovada na
cultura hispânica (ver o clássico
romance do século 19 "Nazarín",
de Benito Pérez Galdós).
Se fôssemos comparar o "Diários de Motocicleta" de Salles,
com seu tom piedoso, com os filmes irreverentes, bem-humorados, irônicos e libertários de Pedro Almodóvar, poderíamos facilmente imaginar que o filme de
Salles data de um passado longínquo, possivelmente dos tempos
reacionários e sombrios de Franco. E sabemos que os filmes de Almodóvar são frutos da era moderna que se revoltou contra
Franco.
O culto contemporâneo ao Che
nos torna cegos não apenas para o
passado mas também para o presente. Neste exato momento uma
luta social tremenda está tendo
lugar em Cuba. Os liberais dissidentes reivindicam direitos humanos fundamentais, e a ditadura
prendeu todos menos um ou dois
dos líderes dissidentes e os condenou a muitos anos de prisão.
Entre esses líderes encarcerados, está um importante poeta e
jornalista cubano, Raúl Rivero,
que está cumprindo pena de 20
anos de prisão. Nos últimos dois
anos, o movimento dissidente
surgiu sob mais uma forma em
Cuba, como campanha para a
criação de bibliotecas independentes, livres do controle do Estado -e a repressão do Estado caiu
também sobre essa campanha.
Solidariedade
Esses acontecimentos cubanos
vêm chamando a atenção de uma
série de intelectuais e liberais em
todo o mundo. Václav Havel organizou uma campanha de solidariedade com os dissidentes cubanos e, ao lado de Elena Bonner
e outros liberais heróicos do antigo bloco soviético, correu para
apoiar os bibliotecários cubanos.
Um grupo de bibliotecários
americanos manifestou sua solidariedade para com seus colegas
cubanos, mas, para poder fazê-lo,
os bibliotecários americanos foram obrigados a lutar dentro de
sua própria organização de bibliotecários, dentro da qual a ditadura de Fidel Castro ainda conta
com muitos simpatizantes.
No entanto, nada disso vem ganhando muito destaque nos EUA,
com a exceção de uma ou outra
coluna de jornal assinada por Nat
Hentoff e possivelmente alguns
outros jornalistas, além de uma
ocasional carta ao editor. As declarações e os manifestos assinados por Havel foram publicados
no jornal "Le Monde", de Paris, e
na revista mexicana "Letras Libres", mas permanecem praticamente invisíveis nos EUA.
A época em que os intelectuais
americanos se uniam de maneira
significativa para defender a causa de dissidentes liberais em outros países, a época em que as declarações de Václav Havel eram
vistas por americanos como chamados importantes pela responsabilidade social, essa época parece ter chegado ao fim.
Eu me pergunto se as pessoas
que se levantam para saudar uma
hagiografia de Che Guevara, como fez o público em Sundance, alguma vez vão dar a mínima para o
povo oprimido de Cuba -se alguma vez elas vão levantar um dedo sequer em prol dos liberais e
dissidentes cubanos. No mundo
do cinema, é fácil fazer um filme
sobre Che, mas quem, no meio
daquele público que aplaude, vai
se dispor a fazer um filme sobre
Raúl Rivero?
Tradução de Clara Allain
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