|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Análise
De matriz brechtiana, grupo reata com prática dos anos 60
SILVIA FERNANDES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A publicação de sete peças da Companhia do
Latão permite ao leitor
conhecer uma das experiências
mais radicais de dramaturgia
brasileira empreendidas nas
últimas décadas. Resultantes
do processo colaborativo de
criação que define a escritura
do teatro de grupo dos anos 90,
os textos reunidos no volume
foram criados ou adaptados em
sala de ensaio a partir das improvisações dos atores e funcionam como modelo das formas mais recentes de produção
de uma dramaturgia cênica coletivizada. A Companhia São
Jorge de Variedades, o Núcleo
Bartolomeu de Depoimentos, o
Teatro da Vertigem e o Grupo
XIX de Teatro são outros
exemplos dessa prática teatral
que revolucionou a cena paulista nos últimos anos.
Mas, sem dúvida, o diferencial do trabalho da companhia é
a opção pela pesquisa do teatro
épico-dialético, de matriz
brechtiana, em que a crítica política das formas de representação é o meio de viabilizar o desmonte dos modos de operação
do capitalismo periférico. Talvez por isso a temática das peças seja recorrente, ainda que o
objeto varie, como observa a
ensaísta Iná Camargo Costa no
prefácio esclarecedor. Nesse
sentido, a criação de "Visões
Siamesas" e "Equívocos Colecionados", em 2004, dá continuidade às reflexões de "O
Mercado do Gozo" (2003), "O
Auto dos Bons Tratos" (2002) e
"A Comédia do Trabalho"
(2000), textos prenunciados,
de certa forma, pela primeira
dramaturgia coletiva do Latão,
"O Nome do Sujeito" (1998), estreada dois anos depois da criação do grupo, em 1996, com
"Ensaio para Danton", que
adaptava o texto de Georg
Büchner.
Retomada
Na tematização do movimento operário, do universo da
prostituição, da mercantilização das relações, da escravização da mão-de-obra ou da ascensão do capitalismo financeiro, os textos apresentam os
destinos individuais imbricados às forças coletivas, e o jogo
de transição entre o íntimo e o
público exige dos dramaturgos-diretores, Sérgio de Carvalho e
Márcio Marciano, um desenho
quase coreográfico de apartes,
interrupções e alterações de
chave estilística.
Ao reatar conexões com a
prática teatral dos anos 60, especialmente do Teatro de Arena e do CPC, o Latão reconhece
o esgotamento do modelo nacional-popular diante das novas relações de trabalho e da
penetração da indústria cultural. E, visando a retomada crítica, é responsável por uma reviravolta nas propostas do teatro
político de perfil mais tradicional, em que a "mensagem" revolucionária é a prioridade.
Apóia-se especialmente nas reflexões de Walter Benjamin e
Theodor Adorno, na teoria do
drama moderno de Peter Szondi, nos ensaios iluminados de
Anatol Rosenfeld e nas críticas
de Fredric Jameson ao pós-modernismo para esclarecer os
mecanismos nem sempre ocultos de determinação das relações sociais em circunstâncias
históricas específicas.
Regras do Jogo
É visível, na sucessão dos textos, a paulatina radicalização da
simbiose entre a pesquisa formal e a reflexão histórica, especialmente quando as articulações do processo social sedimentam-se na estrutura dramatúrgica e expõem, em suas
soluções, aquilo que a temática
procura explicitar. No sentido
próprio do estranhamento
brechtiano, é espantoso constatar, desde "O Nome do Sujeito", a inteligência de mecanismos de construção certeiros
como o da invisibilidade proposital do aristocrata que espolia
e assassina os subalternos, mas
permanece como personagem
ausente de uma narrativa protagonizada por escravos, artistas, clérigos e comerciantes da
cidade de Recife no 2º Império.
As "diversas modalidades de
comércio entre os homens"
reaparecem em "Mercado do
Gozo", que mobiliza três planos
ficcionais para criticar as manipulações da imagem na sociedade do espetáculo. A greve geral que paralisou a indústria
paulista em 1917, o mundo urbano da prostituição e o filme
que associa fábrica e bordel à
mesma cadeia produtiva contracenam num jogo cinematográfico de corte e repetição, que
expõe os pontos de vista da
companhia.
Essa exposição das regras do
jogo aparece, com clareza, em
todos os textos, especialmente
nas cenas que se contradizem
internamente, ao contrapor
procedimentos de literatura e
palco, palavra e imagem, e não é
casual que registrem rubricas
com indicações cênicas detalhadas. Também não é gratuita
a construção fragmentada de
"Equívocos Colecionados", inspirado em entrevistas e escritos teóricos do dramaturgo
Heiner Müller. Nem a opção
pelo tema da migração em "Visões Siamesas", que traduz no
deslocamento geográfico as
mudanças históricas do país e
aproxima a companhia da melhor dramaturgia brasileira
contemporânea de Luís Alberto de Abreu, Gero Camilo e
Newton Moreno.
Texto Anterior: Grupo reapresenta duas peças Próximo Texto: Frase Índice
|