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O dramaturgo Harold Pinter fala de seu processo de criação e critica Tony Blair e George W. Bush
Teatro no tempo da CÓLERA
SEAN JAMES ROSE
DO "LIBÉRATION"
Harold Pinter tem apenas 72
anos. Apenas 72 anos porque monumentos não têm idade, e é difícil imaginar o que o teatro britânico contemporâneo poderia fazer
sem ele. Pinter, como diz seu biógrafo Michael Billington, mereceu
do "New Shorter Oxford English
Dictionary" uma entrada especial
para "pinteresque". Hoje, fala-se
de uma pausa pinteresca ou de
um estilo pinteresco. Mais que
qualquer outro autor de sua geração, do outro lado da Mancha, ele
encarna um certo ideal de teatro, e
seu nome se destaca de maneira
singular do resto da cena teatral
britânica do pós-guerra.
O pós-guerra: os "angry young
men", os jovens rancorosos, liderados por John Osborne, com
"Look Back in Anger" (1956), crítica violenta a uma Inglaterra esclerosada. É a era de Edward
Bond, Arnold Wesker, John Arden, Joe Orton, quase todos
oriundos das classes operárias e
sequiosos por derrubar o teatro
pseudo-shakespeariano e lírico e
os dramas burgueses da era. Nasceu com eles um novo teatro, e, na
efervescência dos anos 50, um
ator de comédia nascido no East
End londrino, Harold Pinter, começou a assinar peças em que
uma linguagem composta de gírias, rupturas e silêncio dominava. "The Room" (O Quarto), encenada pela primeira vez em 1957,
"The Birthday Party" (A Festa de
Aniversário), "The Caretaker" (O
Vigia). A violência se torna uma
nova sintaxe. O humor, no entanto, jamais está ausente do trabalho de Pinter, como o prova sua
mais recente peça, "Celebration"
(Celebração).
Reencontrando o tempo, Pinter
se tornou um "angry young man"
cuja cólera não se aplaca diante do
governo do presidente dos EUA,
George W. Bush. A propósito das
armas de destruição em massa:
"Sei onde estão. Nos Estados Unidos". E sobre o primeiro-ministro
britânico, Tony Blair: "Um poodle perigoso".
Mas Pinter é também Pinter o
roteirista, colaborador de Joseph
Losey: em "O Mensageiro" ("The
Go-Between"), adaptação do romance de L.P. Hartley, Palma de
Ouro em Cannes em 71, bem como em "O Criado" ("The Servant"), "Estranho Acidente"
("Accident") e outros. É lamentável que "The Proust Screenplay"
(O Roteiro de Proust), escrito em
colaboração com Losey e Barbara
Bray, não tenha se concretizado.
Pinter é também poeta. E político. O engajamento foi sempre
parte de sua vida e obra. De passagem por Paris, há alguns meses,
não deixou de expressar a sua
preocupação com a ocupação anglo-americana do Iraque. Ao receber um doutorado honoris causa da Universidade de Turim, em
novembro de 2002, ele evocou sua
luta com o câncer e declarou:
"Emergi de um pesadelo particular e penetrei em um pesadelo público muito mais tenaz, o pesadelo da histeria, da ignorância, da
arrogância, da estupidez e da belicosidade americanas".
Também tratou de literatura,
certamente, porque acabam de
sair na França novas edições de
"The Room" e "Celebration"
(2000), "The Proust Screenplay" e
uma coletânea, "War" (Guerra),
incluindo poesias sobre o conflito
e o discurso em Turim.
Pergunta - O sr. jamais dissociou
a política de sua obra; essa consciência lhe foi legada por seus pais?
Harold Pinter - Venho de uma família de alfaiates judeus de Londres. Meu pai trabalhava 12 horas
por dia e estava ocupado demais
atendendo às necessidades da família para se dedicar à política.
Mas nasci em uma época muito
política, entre as duas guerras, e
tinha 20 anos em plena Guerra
Fria. Paradoxalmente, no final
dos anos 40, voltaram à liberdade
na Inglaterra os fascistas que estiveram aprisionados durante a
guerra. O governo, se bem que
fosse trabalhista, acreditava em
toda espécie de conceitos liberais,
como liberdade de expressão e de
reunião, e fechava os olhos diante
da violência racista desses grupos.
Pergunta - Sua posição de oposição às guerras não é nova; o sr. objetou ao serviço militar por questões de consciência.
Pinter - Isso aconteceu em 1948,
o serviço militar era obrigatório, e
recusá-lo era passível de prisão.
Decidi que não serviria o Exército,
e meus pais ficaram mortificados.
Mas me deixaram fazê-lo, e meu
pai pagou advogados no processo
e na apelação.
Pergunta - O sr. é um escritor engajado, mas nas suas peças nada é
enunciado de maneira explícita.
Pinter - Na arte, não existem distinções claras entre o que é verdade e o que não é. Porque a obra de
arte que aspira a retratar a complexidade do real é, em si, muito
complexa, não se pode definir nada. As questões propostas no nível estético não equivalem às
questões do plano político. E é
responsabilidade e dever de cada
um, como cidadão, distinguir claramente entre a verdade e a mentira. Nas minhas peças, ocasionalmente introduzo elementos políticos, estendo uma tela política,
mas jamais inscreverei ali algo
que seja da ordem de uma declaração. A política está lá simplesmente porque faz parte do mosaico da vida, porque, na vida exterior à arte, na vida em sociedade,
ela existe para todos.
Pergunta - Alguns dos seus poemas, especialmente em "War", parecem ser verdadeiras diatribes
contra a política externa dos EUA.
Pinter - No pesadelo que foi o
conflito no Iraque, minha cólera e
indignação se exprimiram em minha poesia. Nos últimos seis meses, redigi seis poemas, o que é
muito para mim, que jamais escrevi mais que dois ou três ao ano.
Na manifestação contra a guerra
em Londres, em fevereiro, da qual
participaram 1,5 milhão de pessoas, declamei no Hyde Park meu
poema "The Bombs" (As Bombas). Foi impressionante falar
diante daquele oceano de rostos
concentrados que se estendia até
onde a vista alcança. Mas minha
poesia não é exclusivamente política. Escrevi os primeiros poemas
com 13 anos. Estava apaixonado e
infeliz (isso já passou). Dylan
Thomas, mas também o movimento dadaísta e os surrealistas,
foram fonte de inspiração.
Pergunta - O sr. foi comediante, e
é bem sabido que o seu teatro não
se deixa afetar demais pela teoria.
Pinter - Continuo a sê-lo; subi ao
palco em "Two for the Road", em
84, e trabalhei também na adaptação cinematográfica de "Mansfield Park", o romance de Jane
Austen. E embora anteveja toda a
cena, ao escrever para o teatro, jamais parto de uma idéia abstrata.
Uma das minhas alegrias como
dramaturgo é não pensar, ou pelo
menos não pensar de maneira estruturada como é a tendência de
quem escreve um romance. Vejo-me diante da página em branco e
não compreendo nada do que se
passa; então, surge-me uma situação, um lugar, uma visão.
Pergunta - A utilização de ditos
populares, tiques linguísticos, gíria... Seu teatro foi sempre marcado por uma linguagem identificável. E por silêncios reveladores.
Pinter - O silêncio não é uma
ruptura do texto; faz parte integral dele. É contextual. Um texto
que se interrompe não revela uma
suposta "incomunicabilidade",
rótulo usado frequentemente para qualificar meu trabalho, mas
sim um momento de comunicação do vazio interior, uma estratégia de aversão para esconder a pobreza do ser. Nos meus textos, reticências indicam pausas ou silêncios, e os atores se sentem obrigados a fazê-lo durar indefinidamente. Tenho vontade de dizer:
"Meu Deus, continue!". Quando
trabalho como ator em minhas
peças, a pausa chega como um estalar de dedos, porque algo de
dramático aconteceu. O silêncio
deve sempre ser absoluto, mas
não é preciso que dure.
Pergunta - Teatro, poesia, roteiro, o sr. se dedicou a muitos gêneros, mas escreveu só um romance.
Pinter - Quando meu primeiro e
único romance, "The Dwarfs" (Os
Anões), foi concluído, em 56, não
deixei a carreira de ator. Em 1957,
escrevi "The Room", "The Birthday Party", "The Dumb Waiter".
Para minha grande surpresa, me
tornei dramaturgo. Vinte e oito
peças, mais ou menos longas, no
total. O teatro dominou minha
existência e jamais me deixou
tempo para um segundo romance. E havia também os roteiros.
Pergunta - Entre os quais o de
Proust. O que esse trabalho representa para o sr.?
Pinter - O período em que escrevi o roteiro de Proust foi um dos
melhores de minha vida. Passei
três meses lendo "Em Busca do
Tempo Perdido", acompanhando
a velha tradução inglesa de Scott-Moncrief, mas sempre me referindo ao original, com a ajuda de
uma mulher formidável e tradutora de talento, Barbara Bray. Barbara, Joseph Losey e eu colaboramos intensamente.
Pergunta - Como o sr. condensou
todas essas páginas?
Pinter - Não foi um processo
simples. Porque, ao contrário de
[Volker] Schlöndorff em "Um
Amor de Swann" e [Luchino] Visconti com "Sodoma e Gomorra",
que jamais foi realizado, nós queríamos adaptar o romance na íntegra. Fazer outra coisa seria trair
o espírito da obra de Proust. Depois de nosso longo trabalho preparatório, Joe [Losey] me disse
que era hora de escrever. Respondi que sim. No dia seguinte me levantei, me instalei à minha mesa,
encarei as toneladas de notas e livros. Olhei pela janela, fumei um
monte de cigarros. Liguei para
Joe. "Não consigo, não me vem
nada." Joe respondeu: "Vá dar
uma volta no parque". Fui passear
no Regent's Park. Voltei, liguei de
novo. "Nada feito. Hoje não me
vem nada." "Você precisa dormir", disse. Fui me deitar.
No dia seguinte, a mesma história. Peguei o telefone. "Impossível, Joe." Ele me disse: "Sei o que
você tem de fazer". Perguntei o
quê. "Começar!" Comecei, e tudo
surgiu de um golpe, imagens,
sons, cores, odores se justapunham. Trabalhei sem parar até
concluir o roteiro. O filme não foi
feito, mas o roteiro foi adaptado
para teatro na Inglaterra.
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