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CINEMA/ANÁLISE
Em filme, Kiko Goifman mescla humor com elementos da ficção e do noir para contar busca pessoal
"33" traz novos horizontes aos documentários
JEAN-CLAUDE BERNARDET
ESPECIAL PARA A FOLHA
O filme "33" é um documentário no qual o diretor se
propõe a encontrar sua mãe biológica. Mas este é só um ponto de
partida. Quando Kiko Goifman
inicia o processo de busca simultâneo à filmagem, não sabe o resultado a que isto o levará: há uma
certa coincidência entre o que seja
o processo de busca, o processo
de preparação e a própria realização do filme.
Deste modo, "33" se afasta de
uma forma hegemônica de cinema documentário segundo a qual
o filme sempre parte do que chamo de uma situação estável. Tal
situação pode ser um museu, pode ser um grupo de sem-teto que
mora na rua. Nestes casos, o documentarista trabalha sobre uma
situação permanente, pelo menos
durante as filmagens. Num documentário tradicional, a preparação é sempre anterior à produção
das imagens. Esta preparação não
é incorporada ao filme.
Defendo uma outra linha possível de cinema documentário dentro da qual "33" está incluído. Não
são muitos esses filmes, aliás,
pouquíssimos. O que vem a ser
esse tipo de documentário? Essa
outra linha é composta por "documentários de busca". O documentarista parte de um projeto,
porém, o filme não está dado logo
de início. Depende do desenvolvimento de um processo, que pode
ser muito rico, que pode ser menos rico, levando a este ou àquele
resultado. "Passaporte Húngaro",
de Sandra Kogut, faz uma proposta semelhante. Essa idéia de
busca tem a ver com a experimentação, inclusive científica. Na
ciência, muitas vezes, você parte
de uma hipótese para verificar ou
não sua validade.
Então, um filme como "33" supõe -por parte do documentarista- um risco grande, porque
realmente ele não sabe que filme
ele vai poder fazer. É só no final da
filmagem que ele vai conhecer o
resultado de seu material . É um
documentário que trabalha com o
princípio da incerteza. O que é diferente do documentarista tradicional, que opera sobre situações
estáveis e que vai dispor delas
-documentários sobre um quadro, o ateliê de um pintor, pessoas
na rua etc.- durante todo o tempo da realização do seu filme.
O que no "documentário de
busca" se transforma é a própria
postura do documentarista, não
só porque ele não sabe onde vai
chegar, mas porque no caso específico do "33" é uma vivência pessoal que se está investigando. E isso faz com que o documentarista
continue sendo documentarista,
mas ele trata uma questão pessoal, que existe independentemente do fato dele ser documentarista. Kiko Goifman é um filho
adotivo não por ser documentarista. Poderia ser qualquer coisa,
ter outra profissão, mas continuaria filho adotivo. Por outro lado,
quando o diretor realiza a filmagem e monta o filme, esse documentarista, essa pessoa, também
se converte em um personagem.
O diretor conta uma história
que é a história dessa busca. Kiko
é, então, personagem de algo que
podemos chamar de uma ficção
documentária. E este personagem
também é a sua pessoa e é quem
documenta todo o processo da investigação, alimentado pela ânsia
de chegar a um resultado.
Isso é extremamente importante porque na crise da representação -seja cinematográfica, teatral ou literária- existem certas
dúvidas quanto ao personagem
totalmente de ficção. Estamos à
procura de um tipo de figura que
mescla a pessoa, o personagem e
também o observador. No caso de
"33", Kiko Goifman é o primeiro
observador e depois, obviamente,
outros observadores se somam,
os espectadores do filme. Então,
essas três instâncias -pessoa/
personagem/observador-, claramente divididas em categorias
diversas, se fundem.
O filme tem um personagem
cuja estrutura é ficcional, no sentido em que tem um objetivo como têm os personagens da ficção.
Ele enfrenta obstáculos, que vai
superando ou não. Portanto há
uma mescla também entre a atitude documentária e a ficcional.
Estruturalmente são visíveis
traços de ficção. Não como "docudramas" ou reconstituições de
cenas pelas próprias pessoas que
são objetos do documentário.
Nestes casos o documentarista já
sabe aonde vai chegar e o que as
pessoas terão de encenar. Nos
"documentários de busca", a cada
entrevista, a cada nova situação, o
diretor vai em uma direção.
Em "33" essa fusão existe também em outros níveis. Considero
que o filme seja um documentário
com uma atitude humorística.
Um filme de humor pressupõe
ironia e distanciamento. Em que
medida essa ironia e esse distanciamento se transformam realmente em humor é porque a situação tratada é uma situação
crucial para o diretor. Goifman é
um sobrenome judaico. Não há
nenhuma indicação no filme de
que o diretor seja biologicamente
judeu, no entanto Kiko foi educado dentro de uma família judia.
Esse tipo de humor, em relação a
algo sério, tão vital, tão essencial,
que poderia colocar em risco as
relações entre o documentarista e
sua mãe adotiva e o fato de tratá-la de forma distanciada e humorística, é um traço de humor judeu. A capacidade de uma certa
cultura judaica de ironizar sobre
certas situações e fatos gravíssimos. Então não é uma piada que
Kiko Goifman faz. Trata de uma
história fundamental da vida dele,
com um distanciamento construído de duas maneiras:
a) Uma atitude de jogo incorporada ao filme, que são os parâmetros criados na abertura do projeto. A lógica de encontrar a mãe
biológica leva em conta a obediência a certas regras. A principal
é que, fazendo o filme aos 33 anos,
o diretor se obriga a 33 dias de
busca de sua mãe e de filmagem,
independente do resultado obtido. É criada uma coerção inicial e
a atitude de inserir um problema
vital em regras de jogo é fundamentalmente de humor. Essa relação entre o filme e o jogo também se manifesta pelo fato de vários games procurarem também
fundir personagens com as pessoas que manipulam o jogo;
b) A relação do filme com o cinema noir. "33" é construído com
uma certa tonalidade de fotografia, luzes e sons e com a participação dos detetives privados; tudo
isso vem do cinema noir. Uma
operação interessantíssima, porque o filme noir é um gênero de
filme policial, extremamente codificado quanto aos seus personagens, à sua luz, aos seus temas etc.
É muito curioso alguém tratar um
problema tão pessoal passando
pelo viés de um produto da indústria cultural que é a coisa menos
subjetiva, uma mercadoria. Esse
aspecto aponta para a lógica da
subjetividade no momento atual.
Temos uma certa dificuldade em
diferenciar o que realmente seria
genuinamente nosso e o que foi
construído e que assimilamos.
A grande mudança em "33" é
que esse trabalho passa a ser feito
não sobre um personagem exterior ao cineasta, mas sobre o próprio documentarista, na medida
em que a pessoa/a personagem se
fundem. A relação com o filme
noir em "33" é uma maneira de
abordar de forma aguda não apenas um tema a ser tratado, mas
uma questão de vida: "Onde estou
nesta história? Quem sou eu? E o
que eu sou?". Uma subjetividade
construída por todo esse envolvimento da indústria cultural e que,
mais uma vez, representa o sentido geral de busca do filme.
Essa mudança para o "documentário de busca" é extremamente importante. Chego a ter a
impressão -possivelmente errada- de que talvez "33" seja a única produção brasileira que realmente realize isso. Dessa forma,
eu o vejo um pouco como um filme-manifesto que deve ser levado
em conta pelos outros documentaristas. Para mim, "33" representa novos horizontes para o cinema documentário.
Jean-Claude Bernardet é crítico e escritor, autor de "Cineastas e Imagens do
Povo" (Companhia das Letras)
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