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MÚSICA/LIVRO
"Todas as Letras" reúne 460 canções, com cerca de 200 comentários do cantor editados por Carlos Rennó
Gil nos remete à sua poesia com outros olhos
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
São dois livros. Que se tramam
e destramam: todas as 460 letras de Gilberto Gil, em contraponto com cerca de 200 comentários, muitos deles extensos, que
ampliam em muito a primeira
edição, de 1996. Supremamente
bem editados por Carlos Rennó,
que gravou mais de 40 horas de
depoimentos do artista e transformou o mar de prosa num mosaico único de autobiografia, crítica,
filosofia, política, história e religião, refratam a luz da poesia num
diamante original da língua, instrumento de uma lente humana
como nenhuma outra entre nós.
"Tudo está ligado e tudo tem a
ver, não havendo fato isolado no
universo", diz Gil, em certo ponto. Tudo está ligado no universo
desse cancioneiro, que a essa altura já é patrimônio comum, uma
das coisas que nos liga no meio do
caos. O que José Miguel Wisnik
descreve como o "sentimento do
universo e o senso da medida humana", num lindo ensaio de abertura -uma meditação sobre o
emprego da palavra "ilusão" na
poesia de Gil e também uma reflexão sobre o tempo-, ganha aqui
uma equação brasileira capaz de
ser, ao mesmo tempo, e com pleno domínio das ilusões, cosmopolita e local, ultramoderna e arcaica, erudita e popular, cientificista e mística, sem se prender ao
balanço das dualidades.
O próprio compositor parece
responder às intuições de Wisnik
ao comentar agora uma de suas
canções mais bonitas, "Seu
Olhar": "Eu não costumo usar
"ilusão" no sentido corriqueiro
[mas sim] na acepção budista [...]
no sentido do profundo engano
[...] Só sendo a vida uma ilusão
poderá a morte ser alguma coisa;
só o desiludir-se da vida pode fazer da morte alguma coisa". Que
isso não soe despropositado no
contexto de uma conversa sobre
sua canção de amor, que seja de
fato o fecho de uma descrição memorável da fabricação noturna de
poesia e música serve de exemplo
para o âmbito do livro. Aqui se expressa com todas as letras aquilo
que as letras todas expressam
sem. Mas essa é mais uma ilusão,
porque os comentários não são
uma verdade fechada, nem mesmo uma verdade tropical: eles nos
remetem de volta, com outros
olhos, à poesia, de volta com outros ouvidos à música e de volta,
com outra atenção, à voz de Gil,
que ressoa silenciosa por todas as
páginas, conferindo outra presença e outra eloquência à mais eloquente que seja de suas falas.
A construção das canções, "o
muro poético que vai se erguendo
com suas palavras-tijolos", dá pano para luxuosas mangas. O prazer e a dificuldade de escrever
poesia são reencenados dezenas
de vezes, cada vez de modo particular. Seja nas assimetrias e simetrias do metro em "Super-Homem", seja nas conotações sócio-topológicas de "Ladeira da Preguiça", seja na sabedoria chinesa
de "Realce", entre tantas outras,
"o feitio de uma canção é uma
loucura!" -onde a palavra "feitio" pode ser lida em dois sentidos: fabricação e resultado.
Aquele que, em outro lindo texto de apresentação, Arnaldo Antunes descreve como "o receptivo", faz do seu cadinho um cosmos, onde podemos afinal nos
entender, através do que ele faz.
"Viver só me custa a vida", diz um
dos homens de vida mais bem vivida entre nós. (O livro é também
registro dessa riqueza.) Despojamento, desapego: são termos assim, nada comuns, que reverberam na gente logo após a leitura
de tanta poesia. Se lições e vivências ali concentradas, se tantas décadas dessa vida brasileira vêm se
traduzir agora, musical e definitivamente, em maturidade e bem-estar, isso talvez seja a ilusão da
ilusão, mas reforça o sentido de
sabedoria humana da arte de Gil.
Todas as Letras
Autor: Gilberto Gil
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 55 (576 págs.)
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