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Comentário/João Gilberto
Era como se estivesse na casa dos meus pais, em Copacabana
Show remete à época em que a bossa nova surgiu, com João cantando e a turma em volta
DANUZA LEÃO
COLUNISTA DA FOLHA
Valeu a pena esperar mais de
uma hora e meia para ter o privilégio de ver João Gilberto no
Ibirapuera, no melhor de sua
forma. Ele, que é tão contido,
desta vez até falou e pediu desculpas pelo atraso -além de ter
dado uma força para seu amigo
Henry Maksoud, dono do hotel
onde ficou hospedado.
Marcado para as 21h, às
20h30 o hall do auditório já estava lotado. Virou um grande
coquetel onde as pessoas se
cruzavam e se falavam, só que
sem bebida. Todo mundo chegou cedo porque, com João, tudo pode acontecer: até mesmo
ele chegar na hora, mas é claro
que isso não aconteceu. Às 21h,
João estava tranqüilamente
jantando no hotel, comendo
um prosaico bife.
A platéia era, na sua maioria,
seleta e esperou tranqüilamente pelo artista. Às 21h47, uma
simpática voz anunciou que
João já estava em São Paulo
(oh, que bom!), e que a precisão
do artista não é com horários,
mas sim com o violão, no que
todos concordaram.
E fazer o quê?
Quando chegou foi um alívio,
pois com ele há sempre um suspense: será que vem? Mas
quando começou o espetáculo,
quem ouve muito o cantor notou quase imperceptíveis mudanças na modulação de certas
palavras e em alguns acordes.
Brincadeiras que faz quem passa a maior parte do seu tempo
criando e recriando sons. E
também cantou músicas novas,
que não faziam parte do seu repertório.
Ele estava tão à vontade que
se sentiu "no direito" de cantar
duas vezes seguidas "Chove Lá
Fora", só pelo prazer de cantar.
Mas quando cantou "Ligia",
uma coisa curiosa aconteceu.
Ele não pronunciou o nome Ligia nem uma só vez.
Alguns estranharam a letra
cantada por João, mas é que a
música tem duas versões: a que
foi cantada, escrita por Tom, e
uma segunda, mais popularizada, reescrita por Tom com a
ajuda de Chico. Mas como nem
todos conhecem a história, alguns não entenderam a razão
de uma letra diferente. Mas o
público se extasiou, e João não
economizou; cantou que se
acabou. Acho que estava se exibindo para a filha Luiza.
Fechei os olhos...
Num momento em que João
estava cantando uma de suas
músicas mais clássicas, fechei
os olhos e viajei. Era como se o
tempo não tivesse passado e eu
estivesse na casa dos meus pais,
em Copacabana, com João cantando e a turma em volta: Nara,
Menescal, Ronaldo, Chico Fim
de Noite, Vinicius, a maioria
sentada no chão, encostada na
parede, e extasiada, no mesmo
silêncio de hoje, quando João
pega o violão e começa a cantar.
A única diferença é que ele
não usava gravata, e era bem
mais novinho, mas de resto, era
o mesmo, de pouco papo. O negócio dele era a música, nada
mais. Fiquei emocionada, com
saudades, e triste, por saber que
o que dizem é verdade: que o
tempo não volta. Às vezes, mas
só por por alguns momentos,
pára e nos deixa mais tristes depois.
Era um menino, João; éramos todos jovens e os que pertenciam ao mundo da música, o
que não era meu caso, nunca
poderia ter imaginado, nem
nos seus sonhos mais loucos
que aquelas reuniões fossem o
começo de um tipo de música
que começou há 50 anos e que
não dá o menor sinal de que vá
acabar.
Uns gênios, os garotos. E um
gênio João Gilberto, responsável pela mudança que aconteceu na música brasileira e que
influenciou a música do mundo
todo.
Obrigada, João.
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