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Crítica/"A Filha do Coveiro"
Romance expõe sutil jogo de ocultação
Neste último livro de Oates, acirradamente realista, o medo e a paranóia continuam agindo, às portas do século 21
MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quando indagado acerca
da questão judaica em
seu país, por causa de
°seu romance "Complô
contra a América", sobre uma
imaginária aliança entre os Estados Unidos e a Alemanha nazista, o escritor Philip Roth respondeu que a questão hoje não
existe, que o anti-semitismo fora ali um fenômeno localizado,
preso ao passado. Ademais, sua
família, que nunca fora perseguida, presa ou ameaçada, estaria no país havia mais de cem
anos: "É muito tempo para
qualquer família americana".
Ao lermos este último e excelente romance de Joyce Carol
Oates, temos outra impressão.
Não importam quantos anos se
passem, o medo e a paranóia
continuariam agindo, às portas
do século 21, pois haveria atos
que "a história, a totalidade do
"tempo", não é capaz de desfazer". Quando o personagem de
Jacob clama que eles são "americanos como vocês", soa menos como Roth do que como
Shylock, de Shakespeare, que
receia que nunca o vejam como
um semelhante.
Jacob Schwart é um refugiado da Segunda Guerra. Veio
com mulher e três filhos para
uma pequena cidade do norte
do Estado de Nova York. Fora
professor de matemática na
Alemanha, mas agora dá graças
aos céus por trabalhar como coveiro no cemitério local. Afinal,
não teriam de pagar aluguel pelo pequeno chalé onde passam
a morar. Ele diz para a caçula,
Rebecca: "Os fracos são facilmente descartados. Você tem
de esconder a fraqueza". Como
a filha nasceu quando o navio
de refugiados chegava ao porto,
Jacob acredita possa ser vista
como os outros, que não iriam
por isso "machucá-la".
Será? A seu marido não-judeu, ela se vê forçada a dizer
que é da mesma raça que ele,
"da mesma porcaria de raça de
todo mundo". E, quando ele lhe
pergunta que raça seria aquela,
a moça shylockianamente responde: "a raça humana".
Seguindo o conselho do pai,
Rebecca acaba por esconder toda a fraqueza: sua família, sua
personalidade, seu nome. Rebecca, a designada por Deus,
escolhe chamar-se Hazel Jones
em sua nova vida em busca do
sonho americano. Hazel - palavra em cujo corpo se oculta
outra: "haze", ou "cerração",
"neblina"- é também, como a
personagem descobriria depois, o nome de uma morta.
O sutil jogo de ocultação
(também de cadáveres) e de
exumação (até de fantasmas)
que opera nas superfícies envernizadas dos espaços sociais
americanos é o que garante a
força deste romance acirradamente realista de Oates.
MARCELO PEN é professor de Teoria Literária
na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
A FILHA DO COVEIRO
Autor: Joyce Carol Oates
Tradução: Vera Ribeiro
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 67,90 (600 págs.)
Avaliação: ótimo
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